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Há muito por fazer no cruzamento da Cultura com a Educação

Nasceu em Braga, mas mudou-se para a Cidade Invicta de malas e coração, aquando da entrada na Universidade do Porto. É licenciada em Filologia Românica e doutorada em Literatura Portuguesa. Em 1999, foi eleita deputada, concorrendo como independente nas listas do Partido Socialista. Entre Março de 2005 e Janeiro de 2008 foi ministra da Cultura do XVII Governo Constitucional, liderado por José Sócrates. Isabel Pires de Lima, de 59 anos, está de regresso à actividade docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. A profissão, a vida política, a Educação e a Cultura, os novos valores da Literatura, o país, a cidade – tópicos de uma conversa de cerca de três horas, realizada em Julho e resumida nas páginas que se seguem.

É professora. Como escolheu a profissão?

Na minha vida, as oportunidades surgem e eu tenho-as agarrado. Foi um bocadinho assim com a minha ida para o ensino. Licenciei-me numa época em que a Universidade do Porto estava em expansão, designadamente as Letras e as Ciências Humanas. Pertenci ao primeiro curso de Filologia Românica, hoje Línguas e Literaturas Modernas. Os bons alunos eram muito solicitados. Ainda antes de terminarmos o bacharelato, havia directores de escolas que vinham procurar-nos para irmos ensinar Português. Eu fui aconselhada pelos meus pais a não ir logo e, por isso, dediquei-me de uma forma bastante intensa à minha formação nos cinco anos – diria antes nos quatro anos, porque no último foi o 25 de Abril e, na verdade, dediquei-me mais a outras coisas tão importantes para a minha formação como as aulas na universidade. Mal acabei a licenciatura, fui convidada para assistente; hesitei muito, mas acabei por aceitar e ficar na faculdade.

Fez doutoramento em Literatura Portuguesa. É uma das suas paixões…

Trabalho fundamentalmente em Literatura portuguesa, sendo que faço algumas incursões em Literatura Comparada, particularmente envolvendo literaturas de língua portuguesa. Não sou especialista em Literatura Brasileira, nem em Literatura Africana de expressão portuguesa, mas gosto de fazer algumas incursões comparatistas nessas áreas, e também um pouco na Literatura Francesa. A Literatura é, de facto, uma das minhas artes preferidas.

Escreveu recentemente no Diário de Notícias sobre a desvalorização e a perda de espaço da Literatura Portuguesa no ensino. Isso está a acontecer?

Vem a acontecer nos últimos 10/15 anos. Houve claramente uma desvalorização do texto literário, que começou a perder terreno nos finais dos anos 80, com a emergência dos chamados Estudos Culturais. E continuou, nos anos 90, um pouco na onda de retracção das Ciências Humanas nas universidades europeias. É, sobretudo, um fenómeno europeu; nos países anglo-saxónicos, as Ciências Humanas não sofreram uma perda tão grande com a valorização das Tecnologias e a não valorização das Humanidades e das Artes nas políticas educativas.

Muitos autores foram entretanto retirados dos programas escolares.

A maioria, digamos.

Na sua opinião, quais são os que devem constar nos programas?

Há autores que correspondem a um cânone e são incontornáveis. E há outros que, não o sendo, podem e devem ser estudados num momento e eventualmente ser retirados num outro. Para mim, o problema do ensino da Literatura não é tanto este texto ou aquele – a questão é que o texto literário quase desapareceu dos programas escolares, em favor do não literário. Isto é, porventura, entendeu-se que é mais pragmático treinar as competências dos estudantes em língua portuguesa utilizando textos informativos, técnicos, ensinando a ler um livro de instruções, a preencher um formulário técnico… Ora, isto conduziu a uma grande desvalorização do texto literário, cujo exercício de interpretação capacita muitíssimo mais o estudante, treina-o muito mais ao nível da competência na língua materna, simplesmente porque é muito mais exigente. Evidentemente, é mais difícil fazer um estudante gostar de um texto literário do que pô-lo a treinar competências num texto não literário, mas posso garantir que quem for capaz de ler e interpretar um conto de Camilo ou de Torga, ou um poema de Eugénio, é capaz de preencher todos os formulários. Aparentemente, estará a facilitar-se a vida aos estudantes, quando, de facto, se está a não os capacitar para o exercício de uma competência linguística muito mais eficaz do que a daqueles que não têm acesso ao texto literário. E nesta perspectiva há um dado que importa referir: a Literatura é um património colectivo ao qual muita gente só tem oportunidade de aceder nos bancos da Escola. Para muitos, essa é a única oportunidade do direito à leitura literária – que, assim, corre o perigo de ficar reservado só para alguns, quando a Escola teria a missão de permitir a sua realização a todos os jovens.

Mais recentemente, numa entrevista à RTP, disse que a escolha de Nuno Crato para ministro da Educação é extremamente preocupante, porque ele tem opiniões conservadoras e uma visão retrógrada do sector.

Exactamente, acho isso. Fundamentalmente, penso que ele tem uma visão do ensino muito ligada a um conceito de avaliação classificativa, achando que os problemas se resolvem com exames, com a multiplicação da avaliação classificativa. Ora, até hoje, não acho que esteja demonstrado que os exames melhoram a qualidade do ensino; não tenho uma fé cega nos exames como forma de resolver os problemas do ensino, como me parece que o actual ministro tem. Além disso, criar fora do sistema um mecanismo para produzir a avaliação parece-me uma coisa contranatura.

Numa comparação com o acto de ensinar, é mais importante “apanhar o peixe” ou “saber trabalhar com a cana”?

A formação implica esses dois movimentos: usar a cana e, preferencialmente, apanhar o peixe. É o equilíbrio entre as duas coisas que é preciso construir em matéria de Educação. Não tenho uma visão catastrofista do ensino em Portugal. Os estudantes têm hoje competências que os de há 30 anos não tinham, mas faltam-lhes outras. Evidentemente, importa criar competências nos estudantes, mas não valorizo excessivamente os saberes individualmente considerados. Nada me garante que um estudante que tem notas bastante elevadas seja, depois, capaz de mobilizar e fazer interagir os vários saberes – não importa que saiba muito de Matemática ou de Ciências se, depois, não for capaz de fazer interagir esses conhecimentos, no sentido de ser flexível, aberto à inovação, capaz de construir projectos. Porque, hoje, o mercado de trabalho e o exercício da cidadania exigem cada vez mais essas competências: flexibilidade, abertura ao diferente e ao novo, capacidade para mudar de cadeira constantemente. Por isso, por exemplo, discordo do desaparecimento da Área de Projecto – sei que tem muitas resistências, todavia é uma área que valorizo imenso, porque é onde se treina a inter-relação de saberes e de competências. A sociedade actual exige-nos flexibilidade e agilidade na inter-relação de saberes, e acho que o nosso ensino não está a treinar os estudantes nesse sentido. A geração que agora tem 20 anos vai, certamente, mudar muitas vezes de áreas de trabalho ao longo da vida.

Qual é a relação entre a Cultura e o Educação?

É uma relação que importa ser cada vez mais fomentada. Basicamente, a Cultura convoca saberes dos mais diversos, é interdisciplinar por natureza. Numa sociedade como a nossa, promotora da interculturalidade, vamos ser cada vez mais desafiados para o contacto com a diversidade cultural. Parece-me que a presença da Cultura na Educação deve ser muito grande e transversal, e é muito fácil fazê-la ganhar expressão nos programas do Ensino Básico e do Secundário. Lembraria o seguinte: as neurociências têm mostrado que o desenvolvimento do pensamento e do conhecimento se faz de forma muito mais equilibrada se se cruzar o pensamento cognitivo com o pensamento emocional, até porque não há um pensamento meramente cognitivo ou meramente emocional. Todavia, o nosso ensino tem estado fundamentalmente vocacionado para o desenvolvimento do cognitivo. O que acontece é que se, ao nível do ensino, não cruzarmos o incentivo ao desenvolvimento do pensamento cognitivo com o incentivo ao desenvolvimento do pensamento emocional (designadamente, através das artes e das manifestações de Cultura no sentido variado do termo), provavelmente não conseguimos ter sucesso ao nível da Educação de cidadãos capazes de reconhecerem, por exemplo, aquilo que são as narrativas éticas que ainda orientam as nossas comunidades. Estamos permanentemente a dizer que se perderam valores, que os jovens não reconhecem os valores que organizam a comunidade – ora, o reconhecimento desses valores faz-se muito através de um desenvolvimento equilibrado entre pensamento emocional e cognitivo. A importância da Cultura na Escola é fundamental, também, através das áreas patrimoniais, mas muito particularmente das áreas artísticas, que acho que têm uma presença deficiente nos curricula; continuam a ser secundarizadas, em vez de reconhecidas como de primeira necessidade.

O poder executivo é um desafio significativo

Na sua perspectiva, o que falta fazer na Educação?

Muita coisa. Para começar, falta universalizar o 9º ano e concretizar o alargamento da escolaridade obrigatória para 12 anos. Acho que também ainda há que fazer na criação de oferta formativa, apesar dos passos dados pelos governos de José Sócrates, com a criação de cursos profissionais e tecnológicos – hoje, realmente, há muita formação nesses domínios. Importa incentivar a interdisciplinaridade curricular, e não o contrário. É fundamental uma avaliação dos professores séria e consequente – a avaliação é muito importante, através dela pode fazer-se muito pelo ensino. Também é muito importante uma maior co-responsabilização dos pais e dos educadores, porque há claramente uma demissão dos pais na educação dos filhos, passando essa responsabilidade mais e mais para a Escola, pedindo-lhe tudo o que porventura pode dar e o que não pode; e essa responsabilização dos pais deve levar a uma maior exigência de trabalho por parte dos filhos. Há, claramente, uma espécie de infantilização dos estudantes, atribuindo toda a responsabilidade do processo de ensino e aprendizagem aos professores, e eu acho que deve haver responsabilidade por parte dos estudantes. É preciso introduzir uma cultura de trabalho nas escolas. Outro aspecto é a necessidade de fomentar uma cultura cívica, também de forma interdisciplinar. Nada disto é fácil, eu sei. Mas acho importantíssimo desenvolver a noção de pertença a comunidades, e a Escola pode ter um papel muito importante na criação da cultura cívica e na co-responsabilização dos cidadãos. Acho que uma das áreas em que o 25 de Abril falhou foi na construção de uma cultura de cidadania, e quando há momentos de crise como o que estamos a viver, essa falta de cultura cidadã torna-se evidente e cria uma espécie de mal-estar colectivo que em nada ajuda a superá-los.

Como é que se iniciou na vida política?

Na vida política, no sentido amplo da expressão, iniciei-me relativamente cedo, uma vez que a comunidade de cidadãos onde estou inserida foi uma coisa para a qual a minha família sempre me chamou a atenção. Cresci no Estado Novo, numa sociedade muito tacanha, muito conservadora. A imagem que tenho da minha juventude é exactamente a de um país onde nada acontecia. Vivi o 25 de Abril com 21 anos, o que significa que esse foi um acontecimento determinante para a minha vida e para a minha formação. Vivi de forma muito empenhada e muito entusiasmada os anos do PREC [processo revolucionário em curso], com toda a sua dinâmica. E é nessa altura, em ’76, que me aproximo do Partido Comunista – do ponto de vista do envolvimento quotidiano, fui uma militante mediana, talvez até abaixo da média, porque coincidiu com uma época muito exigente a nível profissional. Saí em ’91. Em ’99, fui convidada pela Federação do Porto do Partido Socialista, liderada por Narciso Miranda. Um convite absolutamente inesperado, porque não tinha nenhuma proximidade com o PS. Devo dizer que comecei por resistir. Mas fui. Sou o tipo de pessoa que se deixa tentar com as mudanças; lançar-me num novo projecto não é coisa que me assuste, desafia-me. Era uma hipótese de intervir a outro nível e achei que podia ser interessante. É preciso dizer que estava quase no topo da carreira académica. Se estivesse numa fase muito anterior, acho que não tinha aceitado. Mas naquela altura percebi que já não punha em risco o meu percurso académico fazendo uma paragem, que não pensava que fosse mais do que uma legislatura. Mas aquela legislatura durou apenas dois anos, e continuei na seguinte, que também foi curta, porque houve grande instabilidade política. Na sequência disso, aquando das eleições de onde saiu o primeiro governo de José Sócrates, achei que era minha obrigação participar na campanha. Devo dizer que o convite para integrar esse governo, com a pasta da Cultura, foi igualmente inesperado, mas afigurou-se-me pouco irrecusável. Para quem esteve cerca de quatro anos na Assembleia, na área específica da Educação e Cultura (e também dos Negócios Estrangeiros, basicamente ligada à promoção da Língua), é difícil não achar que aceitar um convite desta natureza é um processo lógico. Passar da área legislativa, e de certo controlo político da acção governativa, para a do poder executivo, é um desafio, uma mudança muito significativa; é outro patamar de intervenção, completamente distinto.

E que balanço faz da experiência como ministra?

Para começar, o Ministério da Cultura não é pequeno. É, ou era, bastante grande e com uma grande diversidade de sectores. Era um ministério de gestão muito complexa, exactamente porque tem uma diversidade de campos muito grande e interlocutores muito difusos. Além de que são áreas de natureza muito diversa: os problemas que se colocam ao Património são bastante diferentes dos que se colocam à produção de Arte Contemporânea, por exemplo. Devo dizer que quando penso nesses três anos, duas coisas me ocorrem: foram os anos da minha vida em que mais trabalhei, anos de grande violência do ponto de vista do trabalho quotidiano, muito exigente; por outro lado, foi um período de grande aprendizagem, e pessoalmente ganhei muitíssimo com a experiência. Uma experiência muito marcante, até porque, por exemplo, me permitiu ter acesso a uma área onde não tinha tido muita oportunidade de intervir – a gestão e montagem de projectos. É muito desafiante definir projectos, procurar meios para os concretizar e pô-los no terreno; convoca muita resistência, porque a mudança é sempre perturbadora, mas é muito interessante. Por outro lado, a dimensão da experiência fez-me encarar de forma diferente certo tipo de questões, porque uma coisa é estarmos numa varanda a ver os acontecimentos e outra é estar com as mãos na massa. Isso dá uma percepção muito distinta da realidade sectorial, do mundo.

Se não tivesse limitações orçamentais, o que gostaria de ter feito enquanto ministra?

Há dois ou três sectores onde investia de uma forma muito particular. Um deles era a criação de uma rede descentralizada de oferta cultural, com incentivos do ministério. Temos uma rede de equipamentos excepcional, mas não temos conteúdos que circulem; temos conteúdos para dar vida a esses equipamentos, mas não temos uma rede para os levar em itinerâncias. Não tanto o Porto, porque a política municipal dos últimos 10 anos tem sido catastrófica do ponto de vista cultural, mas Lisboa tem uma oferta cultural muito forte que não é aproveitada para o resto do país. Acho que era importante trabalhar a descentralização. Outra área era o fortalecimento das políticas públicas de Património, onde há muito por fazer. Por exemplo, não é aceitável que, ao fim de não sei quantos quadros comunitários, o Convento de Cristo, em Tomar, não esteja tratado. Acho muito grave, porque estamos a falar de uma peça da primeira linha da nossa arquitectura patrimonial. Outro exemplo, era urgentíssimo intervir em Sagres, até por razões de oferta cultural ao turismo do Algarve, porque ou qualificamos o turismo, ou ficamos para trás; no futuro, a Europa vai oferecer, fundamentalmente, turismo cultural, muito mais do que sol e praia. Os museus também precisam de incentivos, sobretudo às exposições temporárias (alguns, mais do que isso). Ao contrário do que habitualmente se diz, a situação da nossa museologia não é catastrófica, mas o funcionamento dos museus tem limitações tremendas. Depois, há projectos pontuais que teria concretizado, designadamente a criação de um pólo do Hermitage, para o qual tínhamos um projecto muitíssimo interessante – uma parceria público-privada que iria permitir termos um espaço de qualidade para receber exposições temporárias daquele museu, que tem um dos acervos mais ricos do mundo; ainda por cima, essa parceria permitia criar novas instalações para o Museu da Música, que está sediado numa estação de metro, em Lisboa, e que tem um acervo muito interessante. E ainda na área museológica, no Porto, importaria dar destino ao antigo Museu de Etnografia – estávamos a trabalhar na criação de um Museu de Artes e Ofícios, mas não sei qual é agora o ponto. E, evidentemente, um projecto que me foi particularmente caro e que também ficou pelo caminho: a criação de um museu da língua portuguesa, em Belém, que pretendia ser, fundamentalmente, um museu da viagem portuguesa no mundo, através da Língua, e que por isso tinha como nome provisório Museu Mar da Língua. A ideia era piscar o olho às navegações, que fazem parte da nossa cultura e nunca exploramos em termos de museu ou de outra coisa qualquer – imagine-se como seria interessante um projecto desse género também em Sagres, onde há espaço, atractividade turística e memória colectiva... Outra área onde era preciso investir: roteiros culturais articulados com a oferta turística. Quando se criam rotas culturais, o turismo europeu responde – veja-se o Vale do Douro, onde todos os anos o turismo cresce de forma absolutamente surpreendente. E aqui está outro sector, o Turismo, onde a articulação com a Cultura tem virtualidades enormes.

Isso é o que falta fazer pela Cultura?

Não só. Um aspecto em que há muito por fazer é no cruzamento da Cultura com a Educação, em que é possível fazer coisas interessantíssimas. Assim se entenda e queira, porque o problema é não entender as potencialidades que a valorização da Cultura introduz no ensino. Mas enquanto se pensar que levar os estudantes a um espectáculo, numa viagem cultural ou ao cinema é uma perda de tempo, que é tempo que se retira à Matemática e ao Português, é difícil… E devíamos investir nos departamentos educativos dos equipamentos culturais. Onde também há muito a investir é no diálogo intercultural. Vivemos numa sociedade cada vez mais multicultural, onde a diversidade é inevitável e está em crescimento exponencial. Hoje temos 500 mil imigrantes em Portugal. Ora, 500 mil pessoas é um número muito significativo – temos obrigação, até por sermos um país tradicionalmente ligado à emigração, de desenvolver projectos sérios neste campo; devíamos fazer a promoção da diversidade cultural e do diálogo intercultural.

Geriu dossiês importantes, que deram muito que falar. Quais foram os mais emblemáticos?

A constituição da Fundação Museu do Douro e o lançamento do museu; o lançamento da Fundação Colecção Berardo; a alteração da lei do apoio às artes (que entretanto já foi alterada), em que conseguimos uma lei muito equilibrada e com novos matizes, que não foram claramente percepcionados pela opinião pública; e o lançamento do que poderia ter sido o pólo Hermitage e não foi, porque não houve continuidade do projecto por parte do Governo. Talvez tenham sido estes os dossiês mais emblemáticos. Por que é que há tantas “guerras” na questão dos subsídios, em especial ao teatro e ao cinema? Não é possível uma solução que agrade a todos? Que agrade a todos, não é possível. Os apoios à produção cultural, ao contrário do que se diz, não são muitos e, de facto, nos últimos anos, houve uma explosão de grupos culturais. Os apoios vêm diminuindo e, evidentemente, em casa onde não há pão toda a gente grita e ninguém tem razão. E depois generalizou-se a ideia de que na Cultura toda a gente é subsidiodependente – o que, gostava de deixar expresso, não é verdade. Basicamente, a questão tem a ver com o seguinte… Para começar, ao contrário do que se possa pensar, os responsáveis políticos não metem prego nem estopa nos subsídios; eles são atribuídos por júris designados para o efeito, rotativos e normalmente constituídos por responsáveis de organismos. São eles que determinam como se distribui o bolo, em função de critérios estabelecidos pela Lei, que é feita pelo ministério. O que gera polémica é, fundamentalmente, o não entendimento pacífico desses critérios, porque podem valorizar-se mais uns do que outros, por exemplo, critérios educativos ou de itinerância.

Que opinião tem dos seus sucessores?

A minha opinião é que eles não tinham muita margem de manobra. Vejo mais positivamente a acção da ministra do anterior Governo do que a do ministro que me sucedeu. Quer um quer outro tiveram muito pouco tempo de actuação, mas acho que António Pinto Ribeiro foi bastante desatento aos dossiês que estavam lançados, alguns deles prioritários e concretizáveis, aos quais era possível dar continuidade. Não me parece que isso tenha acontecido. Gabriela Canavilhas também não teve grandes meios e acho que procurou prestar alguma atenção a sectores que conhecia melhor, designadamente à Produção Artística. Mas, sem meios, é um bocadinho difícil.

E do actual secretário de Estado?

Conheço-o razoavelmente. É um homem ligado às literaturas, com quem já me cruzei muitas vezes. Acho que tem um desafio muito grande à sua frente, porque, de facto, é desafiante gerir uma área com as responsabilidades e o peso da Cultura com o orçamento e o peso político de uma Secretaria de Estado. Acho que o programa do Governo evidencia um pensamento muito liberal. Vamos ver o que isso poderá dar, sobretudo em áreas onde não vejo que a iniciativa não pública possa substituir-se com eficácia à iniciativa pública. Não estou a dizer que o programa do Governo não assuma responsabilidades de políticas públicas, mas há claramente áreas onde me parece não existir uma percepção do que sejam políticas públicas de Cultura. Será um desafio muito grande para Francisco José Viegas, mas desejo-lhe todas as felicidades, evidentemente.

Já agora, o que pensa da passagem do Ministério da Cultura a Secretaria de Estado?

Acho que significa tão só a continuação de uma menorização do sector, que o governo de José Sócrates também já fazia. É muito evidente a desvalorização orçamental na Cultura, quando há um alargamento de responsabilidades: tudo quanto era Património Classificado e que estava no Ministério do Ambiente passou para a Cultura; há também a criação de uma série de fundações que trouxeram acréscimo de responsabilidade à Cultura, desde a Colecção Berardo ao Museu do Douro, à Casa da Música... Tudo isso fez com que o Ministério da Cultura visse alargado o seu âmbito de actividade num cenário de enorme retracção orçamental. A extinção do ministério significa, portanto, a menorização da Cultura e a não valorização das políticas públicas de Cultura a que assistimos a nível europeu. A verdade é que o sector cultural aumenta em época de retracção das economias, mas o poder político não tem a percepção de que é um sector onde vale a pena investir; um sector que não deve ser contraído, mas fomentado, na medida em que está a gerar novas áreas empresariais e mais emprego, a criar riqueza. Mas bem sabemos que, normalmente, quando há uma crise, as políticas culturais são as primeiras a ser cortadas, exactamente porque não há um entendimento da Cultura como relevante factor de coesão social e de crescimento económico, que realmente é.

Crise… Como caracteriza o actual estado do país?

Estamos perante uma crise provocada por uma especulação financeira e económica muito acentuada, isso é claro. Mas acho que também há uma crise muito grave de cidadania e de opinião pública, que aliás estão relacionadas. Desde o Renascimento, os povos ocidentais viveram sempre na percepção da crise. A que estamos a viver mexe muito com o lugar que o Homem ocidental se atribui a si próprio, de centro do mundo e do conhecimento. Sentimos que esse lugar está a ser transferido para outro ponto do globo, e estamos a viver esse descentramento com muita dificuldade. No caso concreto de Portugal, acho que a crise é também, em parte, por questões ligadas a um défice de cidadania e a uma falta de hábito do exercício de opinião pública. Não temos essa tradição, e essas coisas não se criam de repente; um país e uma espécie de consciente e de inconsciente colectivos não se mudam de um momento para o outro, demoram muito tempo – Garrett, Herculano, Eça, e Pessoa também, já tinham a percepção da inexistência de massa crítica e de opinião pública em Portugal. Preocupa-me muito este défice de cidadania. Temos falta de percepção de nós, da comunidade a que per tencemos e das características dessa comunidade. As mentalidades mudam, mas devagarinho, e mudam muito através da Escola. Preocupa-me que os jovens não tenham a percepção de que têm acesso ao que apenas um sector muito diminuto e privilegiado da humanidade tem. A consciência desse privilégio é fundamental para a criação de um espírito de cidadania e de comunidade.

Literatura portuguesa está de boa saúde

Qual é a importância da afirmação da língua portuguesa no mundo?

É da maior relevância. Sendo o Português a terceira língua da União Europeia mais falada do mundo, depois do Inglês e do Espanhol, o não investimento é uma questão de atentado patrimonial. Portugal nunca teve uma política verdadeiramente agressiva de promoção da Língua, ao contrário da Espanha, por exemplo, que é super-agressiva. E a verdade é que, neste momento, fruto da dinâmica de crescimento do Brasil e de Angola, o Português está a ser solicitadíssimo. Seria o momento para uma promoção séria da Língua, da Literatura e da Cultura, de uma maneira geral. A Língua tem um valor patrimonial e cultural – e económico, também – fortíssimo, que Portugal não tem cuidado devidamente.

A televisão poderia contribuir para essa promoção… Como vê a eventual privatização da RTP?

Considero-a catastrófica, porque, apesar de tudo, ao nível do canal 2, ainda vai havendo algumas preocupações com a produção de conteúdos e com a defesa da língua portuguesa. Evidentemente, a privatização vai esbater muito essa função. Mas a televisão pública também não fez o que tinha a fazer, nomeadamente na RTP Internacional e na RTP-África. Acho que era importantíssimo para a promoção da língua portuguesa fazer alguma coisa no campo da televisão pública. E no apoio ao cinema, claro – devo dizer que os ciclos de cinema português nos países lusófonos, quando se conseguem organizar, são sempre um sucesso. Portanto, acho que é muito importante apoiar o cinema e os conteúdos televisivos em Português, e esse é um aspecto que a televisão pública tinha a obrigação de promover mais do que promove.

O que pensa do estado actual da Literatura portuguesa?

Está de boa saúde! Diria que talvez a poesia esteja numa fase mais animada do que a ficção. Mas isto é cíclico. Temos uma tradição lírica forte, temos realmente bons poetas e boa produção poética. Neste momento, temos alguns valores muito promissores.

Por exemplo?

Por exemplo, no campo da ficção, temos um nortenho que é um promissor talento: Valter Hugo Mãe; dá corpo a um novo tipo de romance, a novas formas de realismo que estão a emergir um pouco por toda a Europa. Acho que também é interessante o que faz Gonçalo M. Tavares, embora seja mais universal. O Valter é exactamente o contrário, muito português nos conteúdos. Também gosto de Dulce Maria Cardoso – uma escritora a seguir – e acho muito curioso Vieira Mendes, na dramaturgia. Aprecio muito o que faz Manuel de Freitas na poesia, e a produção de Maria do Rosário Pedreira. Não estamos propriamente em má maré. Acho que há muita gente nova, alguns que ainda é preciso ver um bocado mais, mas há nomes muito interessantes por aí.

Qual é o seu autor favorito?

Não sei responder.

E o seu livro favorito?

Também não sei. São duas coisas a que tenho sempre dificuldade em responder. Porque também isso vai mudando ao longo da vida e, às vezes, ao longo da obra do escritor. Um livro que me impressionou muito, ultimamente, foi “Myra”, de Maria Velho da Costa, que tem das páginas mais bem escritas que me foram dadas a ler; é uma grande escritora, de excepção. Recordo, ainda, Paulo Castilho, um escritor mais velho, que começou a publicar tarde e que também dá corpo a novas formas de realismo – bem diferente do Valter, mas também me interessa. E falando em língua portuguesa, a ficção contemporânea brasileira vive um bom momento, tem gente muito interessante, a que vale a pena estarmos atentos.

Portugal, Brasil… O que pensa do Acordo Ortográfico?

Tenho uma posição muito crítica, porque ele está cheio de erros técnicos que são atentados patrimoniais à Língua. É um acordo altamente permissivo. Claro que tem de haver cedências, mas, neste caso, as cedências vão a pontos que são realmente de falta de bom senso patrimonial, e é neste sentido que eu discordo. O acordo pode ter alguma utilidade, mas não é determinante para a internacionalização da Língua – veja-se o Inglês, que não que a cidade ainda mantém; é uma cidade com uma dimensão que ainda lhe permite ter uma identidade muito vincada e afirmá-la. O Porto facilmente encontra momentos para afirmar a sua identidade, coisa que uma cidade como Lisboa já não consegue – exemplo paradigmático foi o movimento em defesa do Coliseu, um património ligado ao imaginário da cidade, quando esteve para ser vendido a uma igreja. Esta cidade ainda tem essa dimensão de comunidade, de afirmação do sentir comum. E tem um lado genuinamente burguês, no sentido mais positivo da palavra, que também me agrada. Há, de facto, uma característica empreendedora no cidadão comum portuense, uma vitalidade que acho que tem a ver com a tradição cultural e que é realmente curiosa. Enfim, é uma cidade ainda cheia de portuenses, e isso agrada-me.

Gostava de voltar à vida política?

Uma coisa que eu aprendi na política é que nunca se pode dizer nunca. Se me dissessem que eu ia estar sete anos no Parlamento e três anos num ministério, garanto que teria dito: de maneira nenhuma, vou por quatro anos! Portanto… As políticas públicas interessam-me, não digo que não. Gosto da actividade política, mas interessam-me sobretudo as políticas públicas. Diria assim: não ponho de lado a possibilidade de retornar à vida política, embora tenha consciência de que há certas áreas que claramente não me interessam. Neste momento estou muito empenhada no regresso à vida na universidade; gosto muito da vida académica e regresso à minha escola com muito gosto. Mas há certos desafios a que, se me fossem colocados, porventura eu era capaz de responder. Não sei bem quais… Refiro-me a coisas não ligadas ao poder executivo, desafios pontuais relacionados com actividades públicas. No fundo, é isso o que me interessa.

De regresso à universidade com muito gosto

É natural de Braga, mas diz-se portuense por convicção. O que a atrai na cidade?

Hoje, a minha cidade é mais o Porto do que Braga, porque vivo cá há mais anos e foi aqui que me fiz adulta. Mas, sobretudo, sinto-me nortenha. O que me atrai no Porto é um certo sentido colectivo tem acordo nenhum e é falado de forma diferente na África do Sul ou na Nova Zelândia. Eles entendem-se muito bem... Portanto, o acordo não é vital. Diria que o momento para ter uma política uniformizante ao nível da Língua já passou; acho que Portugal podia ter feito isso, “a seu favor”, quando foi potência colonial ou, quando já não o sendo, ainda era uma potência cultural irradiadora, como fez a Espanha. Neste momento, não vejo grandes virtualidades no acordo.

Entrevista conduzida por Maria João Leite

 

Guimarães, Capital Europeia da Cultura

“Tenho expectativas muito elevadas sobre a Capital Europeia da Cultura 2012, porque Guimarães é uma autarquia exemplar no que diz respeito à forma como tem tratado a Cultura. Basta lembrar duas ou três coisas: a recuperação do Centro Histórico foi absolutamente excepcional, é um dos mais bem qualificados do país; tem um museu nacional (Alberto Sampaio) a funcionar extraordinariamente bem; tem equipamentos para produção de Arte Contemporânea fantásticos, como o Centro Cultural Vila Flor, que tem uma programação de elevada qualidade. A Câmara tem sido extraordinária. Eles mereciam ser Capital Europeia e acho que vão dar muito bem conta do recado. Sei que vão fazer uma requalificação urbana interessante, fora do velho Centro Histórico, que me parece que vai contribuir para uma maior qualificação da cidade. Há que esperar, também, um grande investimento na área das indústrias, na montagem de incubadoras para indústrias criativas – estão a fazer a requalificação do antigo Mercado Municipal, exactamente para criarem uma espécie de incubadora de empresas ligadas às áreas culturais. Estão a investir muito na área da Arquitectura e Design, porque têm lá um ramo da Universidade do Minho; aliás, têm uma parceria muito boa com a universidade, e acho que isso também tem dado os seus frutos. E depois, evidentemente, há a programação cultural, que imagino que estejam a cuidar, particularmente o festival, que vai ser muito desafiante. Portanto, acho que vamos ter um ano cheio de surpresas”.

Política cultural da Câmara do Porto

“Acho que nós, portuenses ou habitantes do Porto e da zona metropolitana, tivemos um grande azar… Independentemente de todas as falhas que porventura teve, a Porto 2001, criou uma grande dinâmica cultural na cidade: ao nível da qualificação do espaço público, ao nível da requalificação de equipamentos e, claramente, ao nível da conquista de públicos para a Cultura. Tivemos azar porque, depois, na sequência do Porto Capital Europeia da Cultura, tivemos um presidente de Câmara que claramente não entende o que sejam políticas públicas de Cultura. Está no terceiro mandato e se tentarmos pensar no que é que foi feito por este Executivo no campo da Cultura, temos dificuldade. Assistimos claramente à entrega danosa da gestão do Rivoli. Não tenho nada contra o facto de se entregar a gestão a um organismo privado, desde que esse organismo garanta a diversidade que as políticas públicas de Cultura têm de ter. Porque um teatro municipal não pode propriamente exibir o mesmo espectáculo, ou a mesma linha de espectáculos, durante não sei quantos anos. Realmente, o Rivoli perdeu completamente a sua caracterização de serviço público. Na área museológica, também não vi acontecer nada de especial ao nível de oferta municipal; foi-se mantendo o que existia, inclusivamente com uma insuficiente valorização de equipamentos novos, como a Biblioteca Municipal Almeida Garrett. Não consigo encontrar um norte na política cultural, a não ser o criar mega-acontecimentos para os quais se diz que há patrocinadores e que depois custam realmente bastante à cidade, caso das corridas de automóveis e de aviões. Sobretudo, acho que se desperdiçaram os públicos que se tinham conquistado para a Cultura, que se desperdiçou muito daquilo que se tinha ganho com a Porto 2001. Claro que há “ilhas”, há o Teatro Nacional São João, há Serralves, há a Casa da Música, há o Coliseu... Mas nestes equipamentos a responsabilidade da Câmara é mínima, ou nenhuma”.


  
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Edição N.º 194, série II
Outono 2011

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