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Esperteza, desonestidade, poder e crise

Há um sítio onde podemos começar o nosso trabalho de pessoas bem intencionadas: a Escola. Não a da nossa “formação cívica” anquilosada, mas aquela onde haja idade para nos livrarmos dos complexos, da violência e dos sonhos por dominar.

Qualquer veleidade de isenção no que reporta a tentativas de corrupção, na condição de corrompido, poderia parecer desapropriada, ou não fosse esta a perspectiva de quem se aventura na crítica de uma das brechas mais marcantes na actual vida pública do país. Esta nossa característica de pessoas que se incapacitam na sua tentativa da autocrítica, também pelo facto de temermos pelo nosso telhado, pode e deve circunscrever-se ao universo de quantos devem mais do que temem. E será bom, portanto, que se coloquem de lado esses receios de consciência pelo lesa-pátria ou falta de respeito pela dignidade dos concidadãos. Só assim nos será permitido, sem maiores complexos, o diagnóstico da actual posição do país na conjuntura que tendemos a descrever como aquela para que fomos conduzidos. 
Muito do que “nos” qualifica pode assinalar-se como a esperteza do contribuinte em fuga, o que não é suficientemente grave para “nos” distinguir tão nitidamente dos “outros”, como a matreirice do acompanhante de cães que escapa sem apanhar o cocó no espaço do vizinho, para o que não tenho ainda modelo de comparação, como o “furafilas” que se vinga de um destino para que contribui. Não é o bastante para nos colocarmos em condição de pedintes, concordo. Mas vergar todo o nosso egoísmo a um tribunal conduzido por um esperto que em dado momento da vida achou que era legítimo aí chegar, à Magistratura, por via da trapaça, deve dar-nos uma noção do muito que ficou por contar na vida impoluta de uma plêiade de cidadãos que gerem de forma sistemática a coisa pública. Não é preciso desenhar todo o mapa da política nacional para nos apercebermos da percentagem de magistrados potenciais a quem devemos exemplo, fidelidade e respeito. É claro que estas palavras doem, mas longe de mim qualquer desvario masoquista, é óbvio que não há prova nem das fugas ao fisco, nem dos donos dos cocós, nem tão pouco dos bilhetes que ficaram por pagar, mas tenho alguma liberdade de consciência nesse particular, é quase uma certeza que todos nós nos sentimos meio culpados, meio inocentes. Só não é tão evidente o até onde nos devemos culpabilizar e o até onde há responsáveis mais gravosos pelo bacanal financeiro onde nos querem mergulhar todos.
Pela esperteza, talvez continuemos a erguer bandeiras de supremacia; pela falta de civismo, podemos recuar um pouco na História e ver como fomos conduzidos; pela desonestidade, somos todos a pagar uma obediência para que já falta a razão. Mas não é desejável que se venha a instituir um cenário feito de remendos, onde os figurões da peça se acantonem sem sombra nem pecado. Se formos todos chamados a uma palmatória merecida, é difícil perceber onde acaba a compostura do mestre e onde pode vir a começar a lógica dos repreendidos. Por estes motivos, a nossa posição, como lhe chamei, é tão ingrata. Fomos educados para copiar, só que alguns copiam com mais proveito, assim como outros se indignam um pouco mais veementemente, e muitos alimentam com a maior inocência e honestidade, os muitos em que não tenho a presunção de me incluir, mas a quem reconheço o direito de não pagarem por todos, alimentam, dizia, os cofres exauridos de bens para seu benefício de direito.
Há um sítio onde podemos começar o nosso trabalho de pessoas bem intencionadas: a Escola. Não a da nossa “formação cívica” anquilosada, mas aquela onde haja idade para nos livrarmos dos complexos, da violência e dos sonhos por dominar. A Escola onde se conviva para bem de valores que ainda não cotámos em Bolsa, a amizade e a justiça consoante nos mereça a sociedade para que não temos comparação evidente, mas onde uma grande maioria tem lugar de eleição. Dir-se-á que a rispidez de algumas reprimendas pode ser despropositada, contraproducente. O tempo o dirá, mas o presente demonstra que temos mais “cocós” e “cópias” de sucesso do que aquelas para que o espaço público foi predestinado. O resto fica dentro de casa, como as contas impolutas que o Fisco nunca há-de poder dizer que eram dele e lhe foram sonegadas. 

Luís Vendeirinho


  
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Edição:

Edição N.º 194, série II
Outono 2011

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