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Lembranças da primeira escola

De que te lembras da tua primeira escola? Foi a pergunta que lhe fiz. Toma o teu tempo, disse. 

Ela começou a falar daquela escola pequena, instalada num edifício que já tinha sido cavalariça do palácio e casa de habitação, num pátio, para o pessoal que servia o palácio. Uma escola onde crianças e professores se encontraram em torno da vontade de fazer perguntas autênticas. Falou da liberdade que sentia, liberdade para se mover, para intervir, para propor, para pesquisar; da organização do trabalho e da planificação, que era feita em conjunto; da escolha que fazia, individualmente ou com outros, das tarefas e actividades que ia desenvolvendo ao longo de uma semana; da avaliação em conjunto…
À medida que ia falando, voltaram-lhe mais memórias do vivido há duas décadas. Lembrou-se que não se lembra de como aprendeu a ler e dos textos que escrevia, de histórias que inventava com os colegas. Recordou uma escola de onde não levava trabalhos para casa e como ficou encantada quando, mais tarde, depois da primeira escola, já lhe exigiam estudo em casa; que os seus novos colegas não entendiam a alegria que sentia e o seu empenho para este trabalho. E afirmou que não lhe parecia ter sido um problema quase não ter havido trabalhos de casa antes. Evocou a responsabilidade que sentia na própria sala de aula: ter que se organizar no estudo; ter que cumprir tarefas e explicitar como as tinha executado; ter que responder a desafios que a própria organização da turma impunha. Falou de uma reunião semanal, que tinha o nome de assembleia, na qual discutia com os outros e com a professora o trabalho feito. Contou que organizava o trabalho em função dessas discussões colectivas e que tinha a liberdade de o fazer conforme entendia: numa semana trabalhava mais numa área; noutra semana, noutra área. E com a professora e os outros via o que faltava fazer.
Abriam-se novos horizontes, disse, sempre que organizavam uma saída: o encontro com crianças com uma realidade muito diferente da sua; dormir em casa de uma delas; os acampamentos com a escola e o trabalho feito a seguir, apresentado às mães e aos pais. Lembrou-se do computador que havia na sala de aula, numa altura em que “computador” era uma palavra mágica. Um teclado ligado a um ecrã monocromático, uma tartaruga a quem ela ensinava a fazer desenhos. Evocava, ainda com pormenor, a cena em que entrava o Adamastor, que concebeu com um parceiro, tinha ela 9 anos. “Lembro-me daquilo que mais gostava – o desenho. E desenhar no computador, essa foi a maneira como eu percebi que era preciso fazer contas, de menos, de vezes... Foi muito engraçado, descobrir as contas foi uma necessidade que eu tive para poder desenhar, foi muito motivador para mim”.
Falou ainda do recreio, com a grande árvore, para os ramos da qual levava um livro para ler sossegada, na copa da qual se imaginava no posto de comando de uma nave espacial. Recordou as frequentes idas ao jardim botânico, perto da escola, como se fosse uma extensão do recreio da escola. Descreveu o espaço reservado para o ateliê de tempos livres. Os tempos depois do tempo de trabalho eram para as crianças desenvolverem as suas brincadeiras, mostrarem peças de teatro recorrendo a um grande baú, terem momentos de faz-deconta, de representações com fantoches. Eram tempos de enriquecimento da pessoa, não de um currículo, que já era rico em actividades que não estavam empacotadas em tempos curtos. Apresentou a memória de um ambiente acolhedor, que definiu como familiar. Um ambiente onde era normal as crianças apresentarem trabalhos umas às outras, onde havia tempo para ver e ouvir a produção de quem estava no jardim-de-infância e dos mais pequenos ou dos mais crescidos das outras turmas. Um ambiente onde se aprendia, que convidava a fazer perguntas e procurar respostas, às vezes provisórias. Tem 30 anos. Faz do desenho e do cálculo a sua profissão de arquitecta. E lembra-se de muitas rotinas de rigor e de auto-responsabilização nesta escola, onde, até hoje, o desenvolvimento da relação de cada uma das crianças com o saber passa pela aprendizagem da utilização do poder, em colectivo e em cooperação.

Pascal Paulus


  
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Edição:

Edição N.º 194, série II
Outono 2011

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