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O arboreto

Fui àquela escola por mero acaso. Ia procurar uma colega para entregar uns livros. Quando cheguei perto, percebi, entre o estaleiro que se começava a montar, uma mancha verde grande e pouco habitual nos terrenos de uma escola. Aproximei-me e fui olhando com espanto o arboreto que se me ia desenhando perante os olhos. Tratava-se do resultado do Clube de Jardinagem, que há anos se desenvolvia na escola. Havia a salvia de jardim, junto de três mahonias que logo no início da Primavera exibem belas flores amarelas. A althea, de flores brancas; muitos azevinhos. O azereiro, que é hoje mais raro do que o azevinho e parece não merecer a protecção às espécies em desaparecimento…
E um prunus lusitanica, tão português que os ingleses lhe chamam loureiro português. Um carvalho negral – o de folhas aveludadas. Mas também vi carvalhos alvarinho; o carvalho cerquinho, cuja folha faz lembrar a da faia…
Depois era-nos apresentado o zambujeiro, ou oliveira brava; um bosque de cotoneaster com as suas bagas vermelhas; as aveleiras, as magnólias plantadas de estaca. Havia um quercus faginia que veio de Alenquer – não é nada uma árvore da nossa zona; o samouco, os marmeleiros de jardim. Dificilmente se podia falar de uma árvore que não houvesse ali.
No parque dos cactos a variedade era enorme. Estava num talude de tal modo duro que as picaretas saltavam. Foram feitos socalcos com sulipas velhas, serradas uma a uma por alunos de 11 anos. O chão foi atapetado com seis toneladas de xisto, trazido de Valongo em várias expedições organizadas para o efeito. No vidoal, a árvore emblemática do clube com as suas pinhas: carpinus betulus. As zelhas (acer monspessulanum), que os franceses vêm cá buscar e depois chamam-lhe acer de Montpellier.
Um feto arbóreo da Tasmânia, caro, comprado com dinheiro angariado pelos alunos. Ao longo dos anos, houve muitas iniciativas para comprar aquele arbusto, aquela árvore rara que não era fácil obter por doação. Ali está, por exemplo, um bordo-do-Japão. Não é vulgar encontrar esta árvore num jardim.
Disseram-me que a adesão ao Clube de Jardinagem era tal, que foi necessário limitar as inscrições ou ir alternando as turmas. E depois o que eles aprenderam de botânica e ciências…
Mas no entusiasmo dos alunos e professor envolvidos na tarefa de cicerones ocasionais que se me ofereciam estava o desalento e a tristeza.

Vê aquelas máquinas ali? Vão arrancar tudo isto, vão desfazer toda esta colina, vão terraplanar. Todas estas plantas vão morrer. Mas nós continuaremos a cuidá-las até ao último dia. Vamos vê-las serem arrancadas e saberemos que elas pensarão que as traímos, pois estaremos a ver e não faremos nada.
Porquê?
São as obras, as obras da nova escola…

Parecia-me inacreditável. Como não foi pensado um projecto que permitisse, se não poupar aquele arboreto, pelo menos transplantá-lo? Era um arboreto de facto único, pelo testemunho vivo de espécies variadas, espécies autóctones em vias de extinção, espécies raras e exóticas.
O lento ritmo do crescimento de um bosque tivera ali alguma oportunidade. O ritmo de persistência, implicação, esforço, estudo e trabalho cooperativo que dão sentido à aprendizagem, tinham tido ali a oportunidade de um espaço e de um tempo.
Na escola existia, há 12 anos, um Clube de Jardinagem. Na televisão tinha havido nos últimos 12 anos, 12 dias da árvore. Doze dias, um por ano, com direito a sorrisos de políticos a lançarem a terra para plantar uma árvore que, muitas vezes, era rapidamente esquecida; doze dias, um por ano, de discursos sobre a importância de proteger a floresta; doze dias, um por ano, em que as escolas juntavam os alunos e plantavam uma árvore. E feita a cerimónia, tirada a fotografia, escrita a redacção, o que ficava?
Naquela escola havia um arboreto, havia uma consciência colectiva de dedicação à natureza, uma educação cívica entranhada, uma obra construída, uma imagem que passava de uns para os outros. E, no entanto, tudo ia ser ignorado. O enorme vazio entre o que se diz e o que se faz, entre as evocações e apelos à autonomia das escolas e a centralização que esquece o local, entre as proposições de tutelas “bem-intencionadas” e as decisões implacáveis de tecnocratas, o desfasamento entre os discursos pedagógicos e as práticas deixaram no olhar daqueles adolescentes um enorme descrédito e incompreensão.

Um arboreto como este pode ser visto (ainda?) na eB2/3 de Canelas, vila nova de Gaia Clube de Jardinagem, que há anos se desenvolvia na escola.

Angelina Carvalho


  
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Edição:

Edição N.º 193, série II
Verão 2011

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