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Potemkin sempre

Ao Cineclube do Porto

“O que não sei é se a beleza se justifica por si só – e o mesmo pode dizer-se do conhecimento. Ou, dito de outro modo, prefiro a Arte que se funda num sentido moral”. José Miguel Silva

Porto, início dos anos 70. “O Cineclube vai passar o Potemkin no sábado”, dito em surdina. Sábado à tarde, salinha do cineclube repleta, gente de pé, encostada às paredes... E não só. À descoberta de qualquer coisa de completamente novo, num filme de 1925...

Porto, Natal de 2010. Montra da Bertrand: «Poemas com Cinema», da Assírio & Alvim. Antologia organizada por Joana Matos Frias. Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo. Poemas de, entre outros, Herberto Helder, Eduardo de Bettencourt, António Franco Alexandre, Ana Haterly, Alexandre Pinheiro Torres, Ruy Belo, Carlos de Oliveira, Eugénio Andrade, Alexandre O`Neil e Jorge de Sena – deste, o belíssimo “Couraçado Potemkin (depois de ter visto o filme de Eisenstein)”, que não resisto a dar a conhecer.

Entre a esquadra que aclama
o couraçado passa.
Depois da fila interminável que se alonga
sobre o molhe recurvo na água parda,
depois do carro de criança
descendo a escadaria,
e da mulher de lunetas que abre a boca em gritos mudos,
o couraçado passa.
A caminho da eternidade. Mas
foi isso há muito tempo, no Mar Negro.

Nos cais do mundo, olhando o horizonte,
as multidões dispersas
esperam ver surgir as chaminés antigas,
aquele bojo de aço e ferro velho.
Como os vermes na carne podre que
os marinheiros não quiseram comer,
acotovelam-se sórdidas na sua miséria,
esperando o couraçado.

Uns morrem, outros vendem-se,
outros conformam-se e esquecem e outros são
assassinados, torturados, presos.
Às vezes a polícia passa entre as multidões,
e leva alguns nos carros celulares.
Mas há sempre outra gente olhando os longes, a ver se o
fumo sobe na distância e vem
trazendo até ao cais o couraçado.

Como ele tarda. Como se demora.
A multidão nem mesmo sonha já
que o couraçado passe
entre a esquadra que aclama.
Apenas, com firmeza, com paciência, aguarda
que o couraçado volte do cruzeiro,
venha atracar no cais.

Mas mesmo que ninguém o aguarde já,
o couraçado há-de chegar. Não há
remédio, fuga, rezas, esconjuros,
que possam impedi-lo de atracar.

Há-de vir e virá. Tenho a certeza
como de nada mais. O couraçado
virá e passará
entre a esquadra que o aclama.

Partiu há muito tempo. Era em Odessa,
no Mar Negro. Deu a volta ao mundo.
O mundo é vasto e vário e dividido, e os mares
são largos.
Fechem os olhos,
cerrem fileiras,
o couraçado vem.

Paulo Teixeira de Sousa


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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