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O impossível necessário

Não há revolução social sem revolução intelectual, que, entre outras questões, assume a luta por uma sociedade justa e igual como uma luta contra o capitalismo selvagem, na qual a escolarização pública deve estar na linha da frente.

Uma leitura conjunta – seguindo um pouco o desafio de determinadas correntes (contemporâneas, mas não só) no terreno dos estudos literários – de obras como «Consciencism» e «Memórias Póstumas de Brás Cubas», não só nos oferece verdadeiras picadas hermenêuticas críticas para uma melhor compreensão do (des)enlace educação-currículo-(multi)cultura(lismo), como nos obriga a desafiar e desmontar o pretensiosamente impoluto, e por isso perigoso, balcão carnavalesco (Mikhail Bakhtin) em que se acantonam as “análises celebratórias” – legitimadas pela vez e voz científica dominante – em torno do multiculturalismo.
Joaquim Maria Machado de Assis, no seu emblemático «Memórias Póstumas de Brás Cubas» – tido como o primeiro romance da escola realista brasileira e que dedica “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver” –, oferece-nos muito mais do que a falácia da felicidade do presente, até porque “há nela uma gota de baba de Caim”. Na verdade, «Memórias Póstumas...» é uma crítica corrosiva à sociedade da época (as semelhanças com a actual são mesmo próximas) feita com um motejo e ironia sem limites, rompendo com idealismos românticos, embora se teça de um dado romance.
A pena de Machado de Assis atira-se de uma forma canina à sociedade, via determinadas instituições tidas como cartório da moralidade – casamento, família, educação – abalroada pelos pântanos da ‘vida’, da ‘morte’, do ‘adultério’, da vil ‘ganância’ e ‘mesquinhez’, da (in)sanidade e do desafio à ciência. Instituições, essas, besuntadas por pictóricos, disformes e arrogantes seres, perfeitos avatares da justiça social e bem comum. Sem eufemismos, frontal e ciceroniano q.b., o autor desnuda a sociedade da época numa diegese que vale tanto pela forma como pelo conteúdo (cf. Susan Sontag).
Socorrendo-se de um narrador já morto (ele próprio comete esse homicídio), a intriga oferece-nos uma voz delicadamente de punho em riste, sem temores, sem receios, mas também sem zelo algum pela sociedade dos vivos. «Memórias Póstumas...» é um acto de denúncia atemporal, uma antífrase “da volúvel história que dá para tudo, [fazendo] os varões fortes e doidos”, uma consciente tomada de posição perante sucessivos actos de genocídio cultural de uma determinada sociedade quase rendida ao epicentro da injustiça social. A condição do narrador (no caso, morto) não deve ser percebida como uma fragilidade do(s) processo(s) crítico(s); antes, como uma estratégia radical, ou como parte de uma estratégia revolucionária mais ampla, que visa o desafio frontal ao poder e a instituições desenhadas e controladas pelos grupos opressores.
É neste particular que a posição política de Kwame Nkrumah, na dialéctica reforma-revolução, se revela muito importante. Em «Consciencism», Nkrumah desata o nó opressor-oprimido, não pela via da reforma, mas pela revolução.
Segundo o intelectual africano, a reforma não implica uma mudança de pensamento, mas sim ao nível da expressão; não uma mudança no que se diz, mas no modo como se diz. A exploração encontra novas formas de vida até que o povo descubra a oposição entre reforma e revolução, até porque o capitalismo continua com a sua característica de planos pomposos para reformas mesquinhas. O capitalismo descobre (sempre) novos caminhos para implementar reformas, embora genuinamente evitando-as. Numa reforma, os princípios fundamentais permanecem intocáveis, modificando-se apenas determinados detalhes. Nas palavras de Marx, uma reforma não mexe com os pilares do edifício.
Mais do que um desafio sem eufemismos ao(s) podre(s) poder(es) instituído(s), mais do que uma crítica mordaz à génese da injustiça e desigualdade, «Memórias Póstumas...» e «Consciencism» são, simultaneamente, um grito de alerta e uma proposta de acção para todos os educadores de todo o mundo conscientemente engajados na luta por uma escolarização verdadeiramente democrática, justa e igual. Como salienta Nkrumah, não há revolução social sem revolução intelectual – que, entre outras questões, assume a luta por uma sociedade justa e igual como uma luta contra o capitalismo selvagem, na qual a escolarização pública deve estar na linha da frente. Para que não “seja preciso convocar a morte”, para que não se sacrifiquem sacrifícios, é mesmo por aqui que importa perceber a luta por uma educação multicultural crítica.
Felizmente não são assim tão poucas as vozes que ao longo de séculos se têm oposto a todas as formas de injustiça cultural e económica, lutando diariamente e em múltiplos espaços sociais por uma sociedade e educação verdadeiramente democrática pautada por princípios da justiça cognitiva (cf. Boaventura Sousa Santos). Ademais, como denunciou Dwayne Huebner, o grande problema da educação é mesmo a não mudança, sendo que tanto se tem feito para mudar e nada muda. Mais do que nunca, numa época pautada pela condição frágil e precária de um mundo interdependente a braços com desigualdades gritantes, desequilíbrios e conflitos complexos, querelas beligerantes e mortíferas em torno da verdade e dos valores, com um capitalismo global a colocar em causa cada vez mais a democracia liberal (Xudong Zhang), um currículo multicultural critico não celebratório é o caminho para desmontar a lógica cultural do capitalismo global (Fredric Jameson, Masao Miyoshi). Como diria Gayatri Spivak, estamos perante uma tarefa impossível que é necessária.

João Paraskeva


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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