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Ser no tempo: distância do presente

É pelo conhecimento que o ser bruto ascende ao plano da existência, estando a nossa consciência pressuposta na da existência no mundo. A existência no mundo é, primordialmente, uma forma de inerência com as coisas que vêm ao nosso encontro.

“Alles nahe werde fern” – tudo que é próximo se afasta. Ao dizer assim, Goethe referia-se ao crepúsculo do cair da tarde, mas, como bem notou Jorge Luís Borges, o axioma pode ter como endereço a própria vida, as perdas que ela impõe a todos ao longo dos tempos. Privado da visão, na escuridão da cegueira, Borges foi emblemático: "Ao entardecer, as coisas mais próximas já se afastam de nossos olhos (...) Todas as coisas vão-nos deixando. A velhice deve ser a suprema solidão, salvo que a suprema solidão é a morte".
Por certo, é melancólico que o mundo visível se tenha afastado dos olhos de Borges quando da manifestação crepuscular de uma existência que, pela sua produção espiritual, negava o perecer e o sagrava pela consagração da sua obra. Ser e tempo. Neste particular, ponto para Heidegger. Todos nós estamos, de facto, na possibilidade de recorrer à vontade e à inteligência para conduzir as emoções; isso prova uma certa primazia do querer e do saber sobre o sentir. Contudo, esse recurso à inteligência e à vontade não nos deve levar ao erro de negar que estamos primeiro no sentimento. A existência-no-mundo é uma grande emoção: é o sentimento de estar atirado numa situação que nos parece desviada de nossa verdade e tremendamente perigosa. Ao que se nos apresenta a trilha a seguir.
O permanente do pensamento é o caminho. Nos caminhos do pensamento, escondem-se as possibilidades misteriosas de nele podermos avançar retrocedendo, de o próprio caminho de retorno nos conduzir para adiante. Na penumbra da sua luz, o pensamento vê a realidade iluminada. E nós, habitantes de sua iluminação. Mas a sua pouca luz, em vez de sossegar, inquieta a nossa ignorância, afinal é próprio do pensamento estar em dúvidas e cheio de enigmas. O presente do que estava próximo, do que foi, passou, e agora, distantes, olhamos o ser no tempo pretérito indagando-nos a respeito do que ocorreu, sob o impulso dos raios de luz emanados do acto de pensar.
A sobrevivência de uma realidade finita, que para trás ficou, atormenta o pensamento por ainda revelar o sentido do ocorrido. Nostálgica angústia. Mas este é um estado que, antes de qualquer coisa, abre-nos o mundo enquanto mundo, a experiência da existência. Assim, o termo existir torna-se sinónimo de ser-no-mundo, não constituindo, no fundo, senão outro nome para exprimir o que Husserl entende pela intencionalidade da consciência, ao defini-la como vida que experimento o mundo (Weltfahrends Leben). A existência não se esgota na compreensão do viver necessariamente na circunstância mundo, nem na compreensão do risco do ganhar ou perder. Ela ainda se compreende como ser-para-o-fim, que se abre para outro porvir, transcendendo o seu em si. Busca de conhecimento.
Conhecer é então um modo do ser-no-mundo. É pelo conhecimento que o ser bruto ascende ao plano da existência, estando a nossa consciência pressuposta na da existência no mundo. Esta, portanto, não é um lugar, um espaço onde somos colocados, onde nos movemos de lá para cá, onde subimos e descemos. A existência no mundo é, primordialmente, uma forma de inerência com as coisas que vêm ao nosso encontro.
Em boa verdade, o mundo é uma espécie de grande tabuleiro do jogo da vida. Nele as coisas vêem à luz, revelam-se, e cada ente é um lance diferente. O ser-no-mundo, no dizer de Kant, é o que sabe das relações com os outros e com o que está acontecendo na vida humana. Assim, estar bem no mundo, significa ter um comportamento de alcance universal.
Fundamentalmente, enfim, existir no mundo, como modo de inerência com as coisas, é uma forma de saber, de visão, uma clareira envolvente, que nos aproxima e nos distancia do contexto onde estamos situados. O distanciamento permanente da realidade do momento, do presente. Tudo que é próximo se afasta...

Ivonaldo Leite


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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