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Tempo de balanço

Em tempo de balanço, que os contabilistas costumam fazer depois de encerradas as contas do ano económico, apuram-se os resultados do exercício para saber se a empresa deu lucro ou prejuízo e, neste caso, se deve continuar a operar, esperando que o futuro seja melhor do que o passado; se deve declarar a insolvência, quando ainda resta uma esperança, ou a falência, quando já não há esperança nenhuma. 

Perseverando na terminologia contabilística, em consonância com o discurso que, nos últimos meses, diariamente, entropicamente, tem modelado a voz e o pensamento de economistas e de opinion makers preocupados com a “situação líquida”, em alegado estado crítico, do nosso país, entendemos como pedagógico lembrar que “insolvência” significa, in extremis, uma situação em que o património do devedor ou da empresa apresenta um passivo superior ao activo. Donde, deverá ser acalmante o facto de as reservas em ouro do Banco de Portugal estarem avaliadas, hoje, em cerca de 12 mil milhões de euros (o sufi- ciente para pagar o défice deste ano, ao que consta) e a China ter mostrado interesse em comprar uma parte da nossa dívida pública (quem ousaria hoje falar no “perigo amarelo” que amedrontava o imperador alemão Guilherme II?) – sinais de que o país ainda tem pontas por onde se lhe pegue…
Depois, e não menos significativo, os portugueses têm uma história de crises cíclicas que, se não lhe moldaram ainda a parte consciente da mente – que os livraria de estarem ainda agora a desejar conhecer a real “verdade” que os envolve, a errada “estrutura” que os condiciona e o desejável “paradigma” que resolverá, em definitivo, as suas angústias e depressões –, lhes preserva no inconsciente a pulsão vital de que “algo” ou “alguém” surgirá para os salvar.
E, todavia, não se interpelam, cada um de per si, respondendo a perguntas tão comezinhas como estas: Desconfiando de um Estado social, sob a ameaça de os capitalistas fugirem para os paraísos fiscais, a população mentalizada para ter salário que lhe permita comprar casa, ter carro e telemóvel, comer nos restaurantes finos, passar férias no estrangeiro, contar com uma reforma satisfatória, ensino e assistência médica gratuitos e pagar baixos impostos – num país que não tem petróleo, nem gás, nem ouro, nem diamantes; sequer uma agricultura e pesca suficientes para não depender do estrangeiro –, qual será o seu paradigma de emergência?
António Damásio diria, talvez, que é tudo uma questão de homeostasia, ou seja, simplisticamente, de insuficiente capacidade de “gerir e proteger a vida de forma eficiente”. Por seu turno, Eça, num momento de desânimo, entendia, em conspícuo artigo intitulado “A Europa” e publicado, em 1888, na «Gazeta de Notícias» (que hoje, mais do que nunca, é obrigatório ler ou reler nas suas Notas Contemporâneas) que “o homem não melhora nem se aperfeiçoa no que lhe é inato”.
Eça fazia nesse artigo uma análise demolidora da situação da Europa, que “nunca deixou de ser medonha (…) pois a ‘crise’ é a condição quase regular da Europa”, discorrendo:
“ Será necessário, para mostrar a máquina desconjuntando-se, esmiuçar a Itália, inventariar a Espanha, indefinidamente desfiar o rosário e “crises”? Será caritativo falar de nós? No nosso canto, com a azulada doçura do nosso céu carinhoso, a contente simplicidade da nossa natureza meio árabe (duas máximas condições para a felicidade na ordem social), nós temos, ao que parece, todas as enfermidades da Europa. Em proporções várias – desde o défice desconforme até a esse novo partido anarquista que cabe todo num banco da Avenida. E desgraçadamente, além destes males, uns nascidos do nosso temperamento, outros traduzidos do francês, morremos a mais de um outro mal, todo nosso, e que só a Grécia, menos intensamente, partilha connosco – é que, enquanto contra as tormentas sociais nas outras naus se trabalha, na nossa rota e rasa caravela tagarela-se! Tagarela-se num desabalado fluxo labial, cuja qualidade, desde 1820, não tem deixado de decair, da eloquência degenerando na loquacidade – da verbosidade descambando na verborreia!” Mas Eça não era um pessimista e nunca diria como Bernanos (1888-1948): “Uma civilização não desaba como um edifício; diríamos com mais exactidão que ela se esvazia pouco a pouco da sua substância, até não restar senão a casca”. Ao contrário, Eça (que escrevia em Abril) fazia outra leitura do balanço de Inverno: “De sorte que os males presentes, as crises, as misérias, não são mais que o natural deperecimento de Dezembro na floresta humana, donde surgirá uma mais viva, mais rica vegetação de liberdades e de noções”.
Como se quisesse dizer: indispensável, para começar, é banir os incendiários da política e da comunicação social. 

Leonel Cosme


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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