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Porto sentido

Quem quiser entender o Porto e a sua identidade, terá de perceber o significado das glórias do futebol para uma cidade que não desistem de condenar a uma modorra e a uma vida vegetativa.

Se outros méritos não tivesse, «Porto em Azul e Branco» (Afrontamento) teria, desde logo, a grande virtude de demonstrar que há uma cidade, um sentir portuense e portista, que, de tão genuíno e avesso a formatações e generalizações, continua a não pedir licença para existir, cioso dos seus símbolos e da sua identidade. Fruto de 25 anos de escritos, este livro é uma maneira portuense e portista de afirmar a grandeza da cidade, o seu espírito e a sua insatisfação perante a mediocridade. Porque, como escreve Hélder Pacheco, “ser portista é um modo de estar na cidade e de sentir profundamente o orgulho de ser portuense.” Neste livro, mora tudo o que nos veste o corpo e a alma de portuenses, expressão da dignidade da cidade que vive dentro de nós. São palavras, por vezes gritos e lamentos, que afirmam alto e bom som o indefectível apego à cidade onde se nasce. Por isso, os textos são decididamente bairristas e anticentralistas. Escritos na euforia da vitória ou na ressaca amargurada da derrota, tresandam, e bem, a desportista de bancada e a portuense insubmisso. Que fazer, pois, se o Porto é um sentimento de apego aos chãos, aos sítios e às falas, orgulhoso da afirmação das suas diferenças?
Território de sentimentos e pertenças, o Porto continua a fazer manguitos à normalização pardacenta e neutra da tecnocracia, ruborizando mentalidades pacóvias, essas sim, padronizadas e provincianas. Neste livro, moram as “estórias” e gentes humildes de uma cidade e de um clube que deu sentido e corpo ao conceito de símbolo do próprio burgo e da sua maneira de ser. Goste-se ou não, o Futebol Clube do Porto (FCP) representa o rosto da cidade profunda e imperecível, fiel àquele bairrismo que significa… amor ao bairro. E a esse respeito, diz-nos Hélder Pacheco, vencer significa afirmar a grandeza da cidade, a sua rebeldia, a sua vontade de autonomia e a sua auto-estima, que muito doem a quem tenta submetê-la, mas não a consegue controlar.
Para o autor, ser portista é, assim, erguer a voz contra a portofobia e a patologia da superconcentração de recursos e actos do Poder da macrocefalia lisboeta. É opor uma das últimas barreiras de qualidade e talento à arrogância de quem tudo quer possuir e julga que tudo pode. Ser portista, diz-nos Hélder Pacheco, é ainda erguer uma bandeira contra a perversão totalitária do mais provinciano cosmopolitismo arvorado em soberano de todas as vontades.
Este é, pois, um livro de afectos, sentimentos, paixões. Onde cidade e clube são causa e cumplicidade na rebeldia e no inconformismo. Neste livro, moram memórias desta cidade indomável, o Porto refilão que responde à sobranceria, cioso dos seus pergaminhos de liberdade, depois de resistir por séculos a tantas tentativas para o cercar, subjugar e anestesiar.
Este livro é habitado pelo espírito do dragão que cobre varandas e janelas de Miragaia, que passeia pelos telhados sorvendo os ares do burgo, entra pelas clarabóias, se encaixilha nas paredes das casas da Sé e serpenteia por ruas que tresandam a carácter e identidade tripeira. Sentimento e orgulho, estes, que tornam cúmplices travessas e vielas, lojas, tascos, sapatarias, talhos, floristas, peixarias, pomares e todas as representações e ofícios de um humanizar citadino, embelezado por pósteres, calendários, fotografias e peluches, abrigados nesta incontrolável paixão de ser portista.
Este livro é habitado pelo Porto que prepara a garganta, afina o coro, que treina afincadamente o apitar da gaita, o bordar da bandeira, o construir do chapéu com as mãozinhas a baterem palmas. Neste livro, mora, pois, o Porto que penteia o boneco, cose a túnica e a fatiota, que se veste de rei, leva a mascote ao colo ou às costas, embala o sonho e reúne a claque.
Neste livro, com o futebol pela mão e a cidade no coração, Hélder Pacheco traça o retrato deste Porto rebelde, da desforra e da emergência – consciente ou inconsciente – de uma identidade. E nisso se reconstrói o palpitar de comunidades destroçadas pelo cimento, pelo asfalto ou a centrifugação das suas gentes. Quem quiser entender o Porto e a sua identidade, terá de perceber o significado das glórias do futebol para uma cidade que não desistem de condenar a uma modorra e a uma vida vegetativa. Para o burgo, o FCP significa, antes de tudo, ritual e sentimento. E esse ousar vencer, num país de perdedores e de vitórias morais, deveria merecer mais respeito. E elogio. Porque os sonhos também ganham taças. 

Miguel Carvalho
(apartir da apresentação de «Porto em Azul e Branco»,na Fundação Cupertino de Miranda)


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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