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Um património precioso

José Afonso é o nosso maior cantor de intervenção. Este elogio tão consensual e aparentemente tão generoso é a forma mais eficaz de liquidar a obra do grande mestre da música popular portuguesa no que ela tem de universal e de artisticamente superior. Não é sequer uma meia verdade. É, de facto, uma “falsa” verdade. Reduzir José Afonso ao cantor de intervenção, que também foi, é induzir no grande contingente de distraídos a ideia de menoridade artística, (mal) associada à canção política.
É claro que, numa análise larga, podemos considerar cada cantiga de José Afonso uma canção de intervenção, na medida em que todas elas reflectem a sua forma de estar na vida e de a observar. Desse ponto de vista, cada uma das suas cantigas foi concebida deliberadamente à revelia da ideologia dominante e contra ela. Na realidade, porém, as canções de conteúdo expressamente político são até minoritárias no conjunto da sua obra.
Arrumar José Afonso na gaveta da canção de intervenção é não compreender que a dimensão da sua obra está ao nível do que de mais importante se fez na música popular universal do século XX. E se não teve o impacto mundial que merecia, foi tão-somente porque ele nasceu onde nasceu. Além disso, essa etiqueta é um óptimo álibi para que os divulgadores musicais o possam banir com toda a tranquilidade. Porque a música de intervenção já teve o seu tempo e já não interessa ao grande público. Mas sejamos justos: se a rádio e a televisão ignoram a obra de José Afonso, esse facto não se deve apenas ao analfabetismo musical e ao mau gosto de muitos dos seus directores de programas. Deve-se também no editorial do nº 9 da revista Itinerários de Filosofia da Educação, Adalberto Dias de Carvalho defende que “a interpelação da filosofia da educação enquanto filosofia traduz-se numa intervenção efectiva no contexto da produção do saber e da sua prática”, razão pela qual a “comunidade [de investigadores] nasce do encontro dos filósofos e destes com os cientistas e artífices do humano e da sua construção”.
Destaque para o artigo Dédalo e o labirinto: A figura simbólica do labirinto como emblema de educação, da autoria de Alberto Filipe Araújo e Joaquim Machado de Araújo (Universidade do Minho). Lugar ainda, nesta edição do Gabinete de Filosofia da Educação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, para uma reflexão de Didier Moreau (Universidade de nantes), intitulada Que signifie la référence à l’humanisme dans la pensée éducative contemporaine?, e para La place des savoirs dans l’education, de Anne-Marie Drouin-Hans, presidente da Sociedade Francófona de Filosofia da educação. Nos capítulos que integram Contemporaneidade educativa e interpelação filosófica[ Adalberto Dias de Carvalho,coord.], a contemporaneidade educativa é sucessivamente representada e questionada através de uma inquietação que, sendo de natureza antro pológica, ontológica, fenomenológica, hermenêutica ou ética, percorre, de uma forma exigente e fecunda, muitos dos impasses pelos quais passam inevitavelmente os problemas que, por razões políticas ou simplesmente de rotina, vão ficando enovelados na poeira do inconsciente individual e colectivo. Mas é precisamente contra todo e qualquer tipo de conformismo que se ergue a filosofia da educação ao procurar revelar contradições, preconceitos, ao mesmo tempo que perscruta o devir das teorias e das práticas educativas. Recusando sempre ser – diferentemente das ideologias que por vezes a tentam usurpar – um discurso anunciador de finalidades ou legitimador de normas. às imposições do mercado, para o qual e com o qual esses directores trabalham. Sintomaticamente, essa marginalização não tem hoje reflexo no meio musical. Pelo contrário, de há uns anos a esta parte, José Afonso passou a ser o autor mais cantado por todas as gerações e diferentes escolas de músicos. Este facto atesta bem a sua importância na história da música popular portuguesa.
Graças ao seu talento excepcional, renovou a nossa canção popular a partir da tradição musical coimbrã em que se iniciou, integrando novas influências e marcando decisivamente as gerações seguintes. A esse papel não são estranhos três factores resultantes da sua própria vivência: o meio universitário coimbrão, culto e boémio, onde estudavam jovens oriundos de zonas rurais ou semi-rurais, que integrava já, na tipicidade das suas baladas, fortes influências da poesia e da música tradicionais de várias regiões do país, sobretudo das Beiras e dos Açores; a instabilidade, pouco normal para a época, da sua infância e da sua adolescência, que muito cedo o levou a contactar com meios socioculturais muito diferentes; uma cultura literária acima da média, adquirida sobretudo em Coimbra, que contribuiu para elevar os seus padrões de qualidade no uso da palavra cantada.
Mestre incontestado da canção popular portuguesa, simultaneamente um genial autor e intérprete de canções, cidadão exemplar e incansável lutador pela liberdade e pela justiça no contexto da ditadura salazarista, mas também no pós-25 de Abril, a sua vasta obra discográfica, iniciada em 1953 e terminada em 1985, constitui um manancial inesgotável de inspiração e de aprendizagem. José Afonso deixou-nos em 1987. Num país tremendamente desculturado e desatento foi preciso esperar quase um quarto de século para ver aparecer o presente trabalho, que reúne as partituras de todas as 159 canções que gravou, com as respectivas letras e cifras, exceptuando apenas os fados de Coimbra de autoria alheia que interpretou.
Para que este livro possa constituir um complemento de alguma utilidade para quem pretender conhecer e estudar a sua obra, optámos pela transcrição fidedigna do que está registado nos fonogramas, independentemente de pensarmos, num ou outro caso, que poderia haver outras soluções ao nível da estrutura ou da harmonia.

Pela mesma razão, não sugerimos qualquer hipótese de harmonização quando a harmonia não é evidente no arranjo. Apenas nos permitimos alterar a tonalidade de algumas canções na transcrição, nos seguintes três casos:

– para que a partitura reflicta a digitação utilizada, nas situações em que a afinação habitual das violas foi alterada;

– quando os instrumentistas utilizaram um transpositor;

– no limite, quando a tonalidade da gravação, com pequena diferença de tessitura, poderia dificultar desnecessariamente a leitura e a execução.

A autoria das letras e das músicas é de José Afonso, excepto quando são indicados outros autores. Esperamos que este livro possa contribuir para um melhor conhecimento e estudo deste precioso património.

Guilhermino Monteiro, João Lóio, José Mário Branco, Octávio Fonseca


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

Autoria:

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