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Desesperadamente procurando um crítico literário

Acredito que, no meu caso, o tenha feito por ingenuidade, por desconhecer as praxes do “meio”, por imaginar que basta pôr cá fora um livro à José Rodrigues dos Santos para que todas as portas se abram. Não é bem assim. Pode sair-lhe o tiro pela culatra.

Bruscamente, no Verão passado fui objecto de uma acção de pesquisa e localização por parte de uma escritora “desesperada” por não encontrar ecos, nos media, alusivos ao seu primeiro romance. Tentativa inglória, a dela, se porventura calhasse dar comigo em dia de corrente negativa. Apesar de já não exercer, de forma continuada, em Portugal, a crítica literária, da fama não me safo: de vez em quando, lá aparece, oriundo das profundezas do mundo, um ser que topou o meu percurso biográfico na Internet e acha que lhe posso servir de tábua de salvação quanto a atenuar a penúria de comentários sobre a respectiva obra ou ser o veículo privilegiado da divulgação correlativa. Atendi o telemóvel (estava realmente bem-disposto) depois de autorizar que fosse facultado o número de nove dígitos à colega que pretendia chegar à fala comigo. Estabelecido o contacto, foi-me apresentado sem qualquer almofada prefacial um duro caderno de encargos. Solicitou-me a escritora o “apadrinhamento” do seu romance de estreia nos jornais, declarando previamente: o livro era “muito bom”; “gostava muito dele”; amigos e conhecidos não haviam poupado nos elogios depois de o terem lido, faltando-lhe, porém, a palavra de um crítico de nome (a designação não foi bem esta mas o decoro impede-me de ser mais específico) disposto a corroborar o refrão opinativo dos seus próximos, tranquilizando-a quanto à valia do que escrevera. Para essa formidável honra fora eu, calcule-se, o feliz eleito.
Entendia, por outro lado, ser a sua escrita romanesca afim da de José Rodrigues dos Santos, provavelmente referência literária, para ela, das mais importantes da nossa contemporaneidade. Enfim, uma senhora encomenda com todos os matadores, pensava, enquanto escutava a inquilina aleatória do meu apertado tempo.
Tive de interromper o verbo torrencial da inesperada interlocutora para rematar a conversa dizendo-lhe duas coisas muito simples: sim, em tempos fora um homem dos jornais (sem nunca ter sido jornalista profissional), mas já não o era, razão pela qual o “apadrinhamento” pretendido ficava fora de questão; as parecenças do seu estilo com o de José Rodrigues dos Santos não constituíam informação que me enternecesse por aí além, pelo que o melhor seria mandarme o livro. Avaliá-lo-ia segundo os meus próprios critérios ficando de lhe dizer algo, se se justificasse. No dia seguinte, com efeito, o romance Jogos de Perfídia aterrava na minha mesa de trabalho com uma cartinha a acompanhar.
Devo confessar com a maior franqueza ter-me impressionado desfavoravelmente a abordagem da romancista ao crítico semi-retirado, através de procedimentos dignos de uma consulta às Páginas Amarelas, quando se precisa dos serviços de um canalizador, de um electricista ou de um carpinteiro. Recordei logo o escritor, ainda sem retrato nos jornais, que décadas atrás ousara perturbar o meu sábio descanso (dormia, se bem me lembro, a sesta), aparecendo-me à porta todo penteadinho e de mala de executivo na mão para me oferecer o seu livro e pedir-me a inevitável crítica. Eu, que à data cultivava militantemente os valores da modéstia e da ética (hoje em dia sou menos exigente), e à primeira vista tomara o desconhecido por um desses biscateiros de domingo que vendiam enciclopédias ao domicílio, achei, perdoe-se-me o desabafo, inusitado o desplante. Desta vez espantei-me menos, mas ainda me escapou um É preciso ter lata! Não obstante, resolvi-me a pegar no livro.Jogos de Perfídia contém revelações interessantes.
Desde logo, a idade da nova autora: sessenta anos. Por estranho que pareça, este dado alterou substancialmente a minha posição: do instintivo distanciamento passei à relativa curiosidade.
Trata-se de uma reformada que, decidida a escrever nutrido romance, logrou concretizar a proeza com energia e talento. De uma maneira geral, estes ímpetos de pré-terceira idade não excedem um patamar de mediania e amadorismo, respondendo apenas a imperativos de realização pessoal tardia ou de preenchimento do tempo com uma actividade socialmente dignificante.
Ora, o caso de Maria de Fátima Gouveia parece fugir ao estereótipo. Digo parece, porque, tendo lido apreciável número de páginas do livro, não o li todo. Um incrível corpo 9 (?), só admissível em certas edições de bolso, repele a apetência de leitura quando se tem pela frente uma empreitada de 350 páginas. O que, todavia, deu para tirar algumas conclusões, a saber: o discurso literário é convencional, os parâmetros temáticos são os de uma história de “costumes” em registo memorialista com a condição feminina portuguesa nas primeiras décadas do século XX enfatizada pela autora, mas contada com fôlego narrativo – uma percepção mais profissional da economia do texto (semântica e literalmente falando) recomendaria, talvez, a exclusão de duas ou três dezenas de páginas –, agilidade coloquial e boa urdidura de peripécias e enredos amorosos de época. Nos diálogos reside o grande trunfo deste romance, o que ajuda a contrariar a ideia feita de que os nossos ficcionistas negligenciam o discurso directo por não serem capazes de o usar. Algumas cedências a lugares-comuns, revisão menos cuidada, a tal letra miúda, atrapalham, mas não chegam para desvalorizar um esforço criador meritório.
Voltei a falar, ao telefone, com Maria de Fátima Gouveia, perdida numa aldeia chamada Vilas de Pedro, Campelo (Figueiró dos Vinhos), para lhe endossar umas dúzias de palavras solidárias. Defendi que se a obra eventualmente não recolhesse dos media senão carradas de indiferença, isso não constituiria razão para desgostos. Muita gente fina é posta na prateleira, não porque escreva mal ou aborde conteúdos menos candentes, mas porque sim. Um grande escritor do século passado diria: “A seara é pequena para tantas bocas”. Hoje igual a ontem. Não tem a Maria de Fátima de se envergonhar do que realizou. A meu ver, ressalvando as limitações apontadas, passíveis de correcção em versão mais vigiada, saiu-se bastante bem.
Aconselhei-a, no entanto, de boa fé, a não tentar, por iniciativa própria e em directo, prospectar “padrinhos” entre os críticos. Se são de espinha direita (ainda os há, embora façam parte de um escol em vias de extinção), o seu método de aproximação corre o risco de não desencadear senão resistências entre esses especialistas que julga aptos a tomá-la e ao livro por “afilhados”. Que pusesse o editor a lidar com o assunto (uma jovem editora de Coimbra, Temas Originais). Acredito que, no meu caso, o tenha feito por ingenuidade, por desconhecer as praxes do meio, por imaginar que basta pôr cá fora um livro à José Rodrigues dos Santos para que todas as portas se abram. Não é bem assim. Pode sair-lhe o tiro pela culatra. Do José Rodrigues de cuja literatura sou adepto, o apelido é Miguéis. Imagine-se que eu estava em dia mau, levava a peito a fixação epigonista da autora e nem sequer o livro folheava. Lá ia por água abaixo a ocasião de manifestar a M.F.G. o parecer de que, estilisticamente, nada tem a aprender com o dos Santos. Muito pelo contrário.

Júlio Conrado


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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