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O direito a viver em família

O sistema de protecção de menores está centrado no acolhimento em instituição, numa tendência que se tem acentuado e que não tem par alelo n a União Europeia. Contudo, se se entender que a possibilidade de viver em família constitui o princípio geral de um sistema que pretenda ser verdadeira mente especial para as crianças que protege, os desafios que o acolhimento familiar coloca são inúmeros.

Legalmente formalizado há três décadas, o acolhimento familiar (AF) nunca foi, em Portugal, a principal medida de colocação de crianças e jovens em perigo. O acolhimento em instituição, assente numa longa tradição assistencial e religiosa de vários séculos, sempre foi a primeira escolha e a principal medida do sistema; continuou a ser, apesar da formalização das famílias de acolhimento, assumindo no presente uma expressão quase totalitária. Pode, inclusivamente, afirmar-se que, não obstante um discurso crítico da institucionalização e as reservas publicamente expressas em relação ao padrão de funcionamento de uma parte das instituições, mantém uma dimensão, um número de acolhidos e uma localização desadequados aos princípios e valores que caracterizam os lares e centros mais capazes, não havendo sinais claros de que o sistema se prepare para alterar o seu modo de agir. Pelo contrário, o acolhimento em instituição reforçou a sua expressão e predominância nos últimos anos.
A expressão do AF pode ser entendida como um indicador do grau de evolução dos sistemas de protecção, que no passado assentaram, de modo quase exclusivo, na institucionalização. Na maior parte dos países europeus, o AF predomina nas políticas de protecção da infância [Children in alternative care: National Surveys, Eurochild/2010]. Gradualmente, os sistemas abandonaram modelos de actuação assentes na beneficência e na institucionalização.
O Decreto-Lei nº 11/2008, de 17 de Janeiro, estabelece o regime de execução do AF. No diploma, o legislador reafirma a definição de AF que consta da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo: “consiste na atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitadas para o efeito, e visa a integração da criança ou do jovem em meio familiar e a prestação de cuidados adequados às suas necessidades e bem-estar e a educação necessária ao seu desenvolvimento integral”.
No sistema de protecção português predomina, de modo crescente, o acolhimento em instituição, encontrando-se o AF bem distante da expressão que a principal medida de colocação assume. Esta evolução coloca várias questões, nomeadamente da (falta de) qualificação das respostas, da definição de critérios orientadores da escolha e avaliação das medidas ou da articulação (e da circulação) entre as respostas.
O Plano de Intervenção Imediata (PII, Instituto da Segurança Social/2010) faz a caracterização das crianças e jovens em situação de acolhimento. Em 2009, encontravam-se 9.563 crianças acolhidas, a maioria das quais (7.376) com um acolhimento iniciado antes daquele ano. Das 2.187 crianças que iniciaram o acolhimento em 2009, apenas 472 foram desinstitucionalizadas no decurso do mesmo ano.
O sistema revela os seguintes traços: grande dimensão ou elevado número de crianças acolhidas, longa permanência, baixa mobilidade, uma vez que poucas crianças cessam o acolhimento, e um ligeiro movimento de desinstitucionalização (entram 2.111 crianças no sistema e saem 2.771). A este quadro, descrito no próprio plano, soma-se o aumento das crianças colocadas em instituição e a diminuição significativa da expressão do AF no sistema, tendência evolutiva que se mantém desde 2006.
Relativamente ao tipo de acolhimento, em 2009, encontravam-se acolhidas em lares um total de 6.395 crianças, 2.105 em centros de acolhimento temporário e 631 em famílias de acolhimento sem laços, distribuindo-se as restantes por outras respostas pouco expressivas. A colocação em lar, que constitui a resposta mais expressiva do sistema, é uma resposta de acolhimento prolongado.
Em suma, estamos face a um sistema de protecção monocentrado numa medida de colocação – o acolhimento em instituição

– que acolhe cerca de 93% das crianças, tendência que se tem acentuado nos últimos anos e que revela um panorama que não tem paralelo nos países da União Europeia.

O tempo de permanência no acolhimento revela que apenas 5,7 % das crianças estão acolhidas há menos de um ano. No AF, essa percentagem situa-se nos 7,4%, ou seja, estamos face a uma resposta de carácter bastante prolongado. No caso dos lares, esse valor chega aos 17,9% e no caso dos centros de acolhimento temporário sobe naturalmente para os 50%. Em 2009, a média de permanência em AF situa-se em 6 anos, média que no caso dos lares é de 4 anos nas instituições abrangidas pelo Plano DOM (Desafios, Oportunidades e Mudanças) e de 4 anos e meio nas restantes. Relativamente ao escalão etário, as famílias acolhem predominantemente crianças com idades entre 12-17 anos.
O perfil das crianças acolhidas revela um expressivo número com anomalia física ou psíquica. O Relatório de Caracterização das Crianças e Jovens em Situação de Acolhimento em 2009 (PII-ISS/2010) refere diversos estudos que apontam para um valor de 30% da população acolhida com problemas de saúde mental. Constata-se, ainda, uma elevada prevalência de problemas de comportamento, que abrangerão 13% das crianças acolhidas, à semelhança do que sucede noutros sistemas de protecção europeus. Situações complexas que exigem respostas especializadas e qualificadas, quer a nível das instituições, quer a nível das famílias, que devem dispor das competências, dos recursos e da supervisão adequados para assegurar e promover o seu desempenho. Os dados que o relatório disponibiliza sobre o percurso escolar das crianças acolhidas são alarmantes:

– 53% das crianças entre 10-11 anos tinham, no máximo, o 1º Ciclo do Ensino Básico, quando já deveriam ter, pelo menos, a frequência do 2º Ciclo;

– 68% das crianças entre 12-14 anos completaram, no máximo, o 6º ano de escolaridade, quando já deveriam frequentar, pelo menos, o 3º Ciclo;

– cerca de 27% das crianças e jovens entre 15-17 anos não completaram o 9º ano de escolaridade;

– 7% dos jovens com mais de 18 anos frequentavam o Ensino Superior (o que corresponde apenas a 72 jovens);

– 0,2% dos jovens entre 18-21 anos completaram um curso superior (o que corresponde a apenas 4 jovens).

A análise global da escolaridade das crianças acolhidas sintetiza os fracos resultados: 48% das crianças encontra-se num nível abaixo do que seria adequado à sua faixa etária. Esta realidade é mais do que um desafio, constituindo uma situação de emergência que exige do sistema de protecção respostas imediatas que possibilitem o desenvolvimento de um contexto individualizado adequado à aprendizagem, de um espaço protector que segure, integre e estimule a construção do saber.
São inúmeros os desafios que o desenvolvimento do AF coloca, no imediato e a médio/longo prazo, se entendermos que a possibilidade de viver em família, para as crianças que não podem continuar a viver junto das suas, constitui o princípio geral de um sistema de protecção que pretenda ser verdadeiramente especial para as crianças que acolhe. Desde logo, a necessidade de se divulgar e promover o AF – aumentando a quantidade e a qualidade de informação sobre a medida, os seus princípios, papéis e funções – e de se apoiar a investigação científica neste âmbito, permitindo um maior conhecimento, e mais fundamentado, sobre a sua natureza e os seus resultados. O sistema deve aperfeiçoar a informação disponibilizada no PII e operacionalizar uma base de dados que apresente, em tempo útil, dados actualizados e fiáveis sobre o AF, relativamente às restantes medidas de colocação e às outras medidas de protecção. Por outro lado, os actos e decisões sobre o AF não devem estar exclusivamente subordinados ao princípio imperativo de um hipotético regresso à família biológica, que não chega a concretizar-se na maioria dos casos. O que justifica a importância de se reconhecer o AF prolongado, que preveja a estadia até à maioridade ou independência de vida, e, simultaneamente, as competências parentais que, naquelas circunstâncias, os acolhedores tantas vezes desempenham.
Em suma, reconhecemos a necessidade inadiável de se transferir uma parte significativa das crianças que se encontram acolhidas em instituições para o AF, o que depende (também) do aumento dos apoios previstos como compensação pelo acolhimento para um nível que permita fazer face às despesas com as crianças acolhidas e pela alteração do regime fiscal e/ou do regime de descontos obrigatórios. Outro desafio passa por não se esquecer a família biológica, acompanhando-a, de modo a incentivar e apoiar a alteração do quadro deficitário que obrigou à retirada da criança. Os jovens precisam de mecanismos ou programas que facilitem a sua transição para a vida independente. Quando atingem a maioridade, mas não reúnam as condições para iniciar uma vida autónoma, há que encontrar meios ou instrumentos que suportem as famílias que os acolhem e que possibilitem uma transição mais prolongada e adequada para a autonomia. Resta desejar que o quadro jurídico, a par de outros domínios essenciais e complementares, como o aperfeiçoamento da prevenção primária e a articulação entre as entidades competentes pela intervenção em cada comunidade, sejam capazes de promover, em conjunto, uma intervenção oportuna, pautada por critérios temporais, eficazes e justos. Em nome do bem-estar, da educação e do afecto a que as crianças acolhidas devem ter acesso e que se resumem num direito essencial – o direito a viver em família.

Paulo Delgado


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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