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Gênero sexualidade e seus desafios aos currículos

Os currículos não são neutros e não acontecem em vazios culturais, políticos, ideológicos e econômicos. Eles são arranjos que se inter-relacionam diretamente com as dinâmicas de gênero, raça/etnia, classe e, por isso, devem ser questionados.

Há quem defenda que a sexualidade não configura os currículos, o que revela o seu desconhecimento. Ela sempre esteve nas formas como a Escola orientou suas práticas. Posso citar inúmeros casos, porém, elejo a experiência de Jonathan, de 14 anos, aluno na Cidade de São Gonçalo, Brasil. Chegando à escola, fui surpreendido com uma professora em uma discussão acalorada com alunos. Dias depois soube que ela defendia seu sobrinho Jonathan, também aluno da escola, dos deboches sofridos no jogo de vôlei. Como o seu saque não atravessava a rede, seus colegas lhe exigiam um “toque de homem”. Recém matriculado na escola pública em que eu trabalhava como professor, Jonathan havia estudado até então em escolas privadas, onde havia sido retido duas vezes. Comovido com a situação e preocupado com suas ausências, fui conversar com as orientadoras pedagógicas. Já de início sabia que suas retenções e o episódio envolvendo a professora tinham como elo as agressões diárias que ele sofria na escola devido ao fato de que suas atitudes não correspondiam às de um adolescente masculino naquela escola e tantas outras. Para minha surpresa, a conversa não foi produtiva. Dado que a situação de Jonathan passava pelo eixo gênero-sexualidade, as orientadoras encararam as agressões como algo a ser resolvido na família e com o seu envio ao serviço psicológico. Ao não encarar as agressões como algo de responsabilidade da escola, as orientadoras se isentaram de reconhecer que suas práticas curriculares também tinham modelos aos quais Jonathan não se adequava e que o melhor era não tê-lo na escola.
A discriminação a Jonathan e a resposta das orientadoras afirmaram o ‘direito’ dos que discriminam e a subalternidade dos que são discriminados. Com essa situação, vimos que os currículos não são apenas espaços de construção de identidades, mas de significados e símbolos que rodeiam e apóiam estas identidades. Para sujeitos como Jonathan, seus anos na escola são atravessados pela capacidade de vivenciar as agressões, devido às normas de sexualidade e gênero.
Todos nós possuímos idéias sobre o que é ser homem ou mulher. Muitas vezes dicotômicas, as idéias são frutos de nossa cultura e atuam diretamente na educação e, por sua vez, em nossa subjetividade. Porém, deveríamos nos interrogar sobre o papel político das categorias ‘mulher’ e ‘homem’. Assim como a categoria ‘mulher’ (com suas implicações) foi uma invenção do ‘homem’, como já dito por Simone Beauvoir no “Segundo Sexo”, a homossexualidade vem sendo um corpo alimentado pela lógica heteronormativa.
Como estratégia política, o binarismo é deficiente, à medida que não fragiliza, de fato, o sistema heteronormativo e cria outros movimentos de subalternidades. Torna-se necessária uma alteração curricular que destitua a lógica binária e seus efeitos na Escola. Sob a ótica desconstrutiva seria necessário questionar os processos pelos quais uma forma de sexualidade (a heterossexual) e um governo de gênero (o masculino) acabaram por se tornar a norma e passaram a ser entendidas como ‘naturais’.`
O conhecimento escolar como um artefato naturalizado tem permitido falaciosas e letais práticas. Os currículos não são neutros e não acontecem em vazios culturais, políticos, ideológicos e econômicos. Eles são arranjos que se inter-relacionam diretamente com as dinâmicas de gênero, raça/etnia, classe e, por isso, devem ser questionados.
Com Jonathan aprendi que a masculinidade é uma configuração em torno da posição do homem na estrutura de gênero e se reflete em sua experiência física, sócio-cultural, pessoal e frequentemente é definida na dicotomia homem/mulher. Para ser homem é preciso tornar-se homem, o que sugere que o caminho para concretizar suas regras precisa ser construído e conquistado. Tal como ocorre com a mulher. O episódio com Jonathan nos dá pistas do ideal masculino na Escola e ele passa pela capacidade até de agredir o diferente. Aos engajados nas lutas contra as desigualdades é preciso que saibamos que ao criticar as subalternidades capitalistas, devemos radicalizar a crítica às formas que (re)criam o androcentrismo, o racismo e a heteronormatividade. Ao invés de discriminar poderíamos pensar que existem potencialmente tantas sexualidades e expressões de gêneros quanto existem sujeitos no mundo. Daí, a necessidade de não naturalizar os gêneros e as sexualidades porque eles são construídos como um projeto e requerem a participação também da Escola.
Lamentavelmente, Jonathan não concluiu o ano letivo. Seus sucessivos retornos à escola e suas freqüentes ausências nos denunciam as dificuldades de várias escolas de reconhecer e de buscar aprender com os/as diferentes.

Marcio Caetano
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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