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A patologização da diferença em territórios escolares

Se o aluno diferente for enviado sistematicamente para o psicólogo da escola, a intenção de mediar tensões e diversidades pode resultar numa visão dos territórios mais próxima de um hospital de problemas sociais do que de uma escola para todos.

Mediar tensões, resolver conflitos, lidar com a diversidade na Escola, de forma inclusiva, sem gerar desigualdade, é hoje ponto assente para a concretização de uma “escola para todos”. A ideia da mediação de conflitos, as pedagogias inclusivas, inter/multiculturais e flexíveis são voz corrente nos teóricos da Educação e no discurso quotidiano de professores e outros agentes educativos.
Contudo, entre a intenção e a concretização, entre o dizer e o fazer, vai, por vezes, demasiada distância e alguma contradição. É vulgar ouvirmos falar do professor mediador, mas, provavelmente, o sentido da mediação descai mais para a visão do problema no aluno em si, como se duma essência se tratasse, do que para a mediação das tensões sociais resultantes do convívio entre pessoas heterogéneas quer do ponto de vista cultural, quer do ponto de vista comportamental. E a montante do conflito na Escola, que existe, é facto, há, tantas vezes, rotulagem de diversidades que são classificadas como problema, quando, na verdade, o que se passa é a ausência de diálogo entre as partes, que, por ser difícil, poderá ser facilitado quer por professores, quer por profissionais sociais, quer mesmo por alunos mediadores. Mas não se trata de abolir as tensões inevitáveis a qualquer vida em grupo: “O conflito é para ser vivido, e não evitado ou, mesmo, solucionado. Pensar diferente e sentir diferente é inerente às relações humanas e potencialmente fonte de crescimento. Discutir essas diferenças, aduzir argumentos, mostrar que não pensamos da mesma forma é absolutamente saudável” (Maria Emília Costa, Gestão de conflitos na escola). No trabalho de campo que temos realizado em territórios escolares, seja em Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), seja em territórios que reivindicam gabinetes constituídos por equipas multidisciplinares para fazer apoio ao aluno e à família (GAAF), temo-nos concentrado no modo como os professores e directores concebem a prática dos profissionais sociais que reivindicam para dentro da Escola em conjugação com o papel educativo dos docentes. Numa conversa sobre a multiplicidade de funções que um professor tem de desempenhar, o director de um agrupamento de escolas que há muito tem sustentado uma Oficina de Comportamento como espaço de mediação sociopedagógica dizia: “O professor tem que, forçosamente, ser um mediador; o professor tem de ser um gestor de conflitos. Está na moda, mas tem que ser um gestor de comportamentos, tem que ser um gestor de atitudes e um gestor de relações humanas”.
Muitos professores entendem que esse trabalho que se estenderia aos intervalos e ao percurso entre a Família e a Escola é demasiado para o professor que está carregado de tarefas burocráticas para além das pedagógicas. Reivindicam técnicos especializados para essa mediação, que, convém (re)lembrar, antes de ser sociopedagógica e antes de ser de conflitos, é sociocultural.
Mas não é líquido que mesmo esses técnicos, que existem nos TEIP e nos GAAF, sejam representados como algo que se enquadre para além dessa milagrosa ideia de resolver os conflitos, como se de uma doença se tratasse. Alguns assistentes sociais que trabalham nesses territórios estão a tentar dar esse passo para além da psicologização do problema que é apontado ao aluno: “Já tinham um GAD [gabinete de apoio disciplinar] constituído só por professores que recebia os alunos expulsos da aula. Mas começaram a ver que as questões disciplinares tinham causas sociais e que não tinham capacidade, nem tempo, nem formação para tratar assuntos com toda essa amplitude”. No contexto de um TEIP, tem-se assistido a uma tentativa de alteração dessa representação de patologização das questões disciplinares, como nos refere um dos professores responsáveis: “Os psicólogos, hoje, são perfeitamente aceites na escola.
Mas, inicialmente, havia aquela ideia estigmatizada que era para tratar daqueles casos dos malucos, dos que não ‘batem bem’ e vão para o psicólogo. Hoje em dia, procuramos mudar esta atitude. O psicólogo está ali para trabalhar com os directores de turma e com outros técnicos. Evitamos que se fale em enviar ao psicólogo sempre que surge algum caso mais complicado. Tudo deve ser resolvido em rede”.
Mas são mudanças que não são fáceis de operar. Se, efectivamente, o aluno diferente for enviado, sistematicamente, para o psicólogo da escola, ou para o GAAF, dos efeitos da intenção de mediar tensões e diversidades pode resultar, por vezes, uma visão do TEIP ou do GAAF mais perto de qualquer coisa como um hospital de problemas sociais do que de uma escola para todos que constrói estratégias de diferenciação pedagógica e social.

Ricardo Vieira
Ana Vieira


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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