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Para além do discurso do mérito

Ao invés de nos centrarmos nas características in dividuais dos alunos e nos limites que elas impõem, devemos atender às barreiras  ambientais e sociais que impedem um genuíno acesso à igualdade. A igualdade depende da criação de condições diferentes que permita m o acesso de crianças e jovens diferentes às mesmas oportunidades de sucesso.

A diversidade e o pluralismo no espaço público são sinal da qualidade e vitalidade da democracia. No domínio da Educação, no entanto, a expressão dessa diversidade tem sido francamente limitada nos últimos anos, com honrosas, mas poucas, excepções. A pretensa oposição entre os defensores do mérito e os defensores da pedagogia resultou na subjugação dos especialistas em educação, agora apresentados como representantes do “eduquês”, a que corresponderia uma visão facilitista da educação. A consequência é que, fora dos espaços como a PÁGINA, os especialistas em Educação parecem ter sido silenciados, e isso tem implicações negativas na construção de uma opinião pública informada sobre questões educativas. Vem este discurso a propósito de uma entrevista da ministra da Educação, Isabel Alçada, ao «Expresso», no passado mês de Julho, em que era apresentada a possibilidade de “acabar com a repetência no ensino” e referidos os custos das repetências por ano: cerca de 600 milhões de euros. As reacções foram imediatas e envolveram todo o espectro dos partidos políticos, da esquerda à direita: a medida foi qualificada de “economicista” e “facilitista”. A posição dos sindicatos foi análoga. Ou seja, parece haver algum “consenso” público de que a retenção é uma boa estratégia para lidar com as dificuldades de aprendizagem dos alunos, e qualquer desafio a esta concepção é desqualificado como um atentado ao mérito. Parece-me um sinal evidente de que os “consensos” são coisas a evitar e muito pouco recomendáveis. Confesso que esperei alguma reacção de alguns dos especialistas em Educação que ainda têm presença no espaço público.
Mas, tanto quanto me apercebi, o assunto não despertou o interesse. A maioria das reacções que circulavam no ciberespaço, e que podem ainda ser consultadas, foram no sentido de criticar a inadequação da proposta. melhorar a aprendizagem dos alunos com dificuldades. Conclusão que é consistente com os resultados da investigação educacional desde a década de 70. Esta constatação não é só amplamente conhecida pelos especialistas em Educação, como tem estado na base da procura de estratégias alternativas nas escolas portuguesas.
Efectivamente, só quem não conhece a realidade das muitas boas escolas públicas por todo o país pode achar surpreendente que alguém defenda estratégias alternativas à retenção – que muitas delas implementam há já vários anos, exactamente porque sabem quais os custos da retenção. Não tanto os custos referidos pela ministra, mas aqueles que existem para além do orçamento, e que se traduzem, a longo prazo, em sofrimento pessoal, rejeição social, manutenção ou agravamento das dificuldades de aprendizagem, como os estudos longitudinais neste domínio também revelam. Esta posição é exactamente um sinal da falta de uma opinião pública informada que acima referi. É que, por mais que possa parecer intuitivamente válida, a retenção é uma estratégia que não tem suporte empírico e que tem sido fortemente posta em causa pela investigação.
Por exemplo, partindo da análise dos resultados do Programme for International Student Assessment (PISA) no domínio da Matemática, Vincent Dupriez, Xavier Dumay e Anne Vause constatam, em artigo na «Comparative Education Review», que a situação dos estudantes com rendimento escolar mais baixo é agravada em países que optam por um sistema de retenções (como Portugal ou França), da mesma forma que os sistemas não unificados – com vias de ensino alternativas, em que os estudantes são precocemente colocados, como na Alemanha, por exemplo – são os que geram mais desigualdades sociais. A conclusão deste estudo é que a opção pela retenção é uma estratégia ineficaz para
A reflexão que é feita a propósito das crianças e jovens com incapacidades reveste-se de particular saliência neste caso. O argumento é que, ao invés de nos centrarmos nas suas características individuais e nos limites que elas impõem, devemos antes atender às barreiras ambientais e sociais que impedem um genuíno acesso à igualdade. Ou seja, a igualdade depende de tratamento desigual, depende da criação de condições diferentes, para crianças e jovens diferentes, que permitam o acesso às mesmas oportunidades de sucesso. Essas condições não podem passar pela exclusão, e envolvem uma responsabilização acrescida de todos os actores educativos.
Falar em facilitismo, nestas condições, é sinal de desconhecimento do processo educativo e da exigência que envolve criar condições para que todos aprendam.
É, também, manifestar uma desconfiança básica nas escolas, nos professores e nos outros profissionais da Educação.

Isabel Menezes


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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