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Educação e Res Publica

Viagem aos ideais republicanos

A educação foi uma aposta clara da República. O valor do indivíduo, a formação dos cidadãos para que se tornem mais solidários, mais cultos e mais participativos na vida pública, o papel dos professores ao longo dos 100 anos da República portuguesa, foram os temas centrais do colóquio “Educação e Res Publica”, promovido pela PÁGINA, no dia 2 de Outubro. 

“O ideário republicano, que vem muito atrás da história do pensamento e da história da educação dos homens, é o pensamento que entende o valor da razão, o valor do indivíduo, da liberdade individual, da participação democrática em todos os assuntos da comunidade”, começou por explicar José Hernández Díaz (Universidade de Salamanca), no primeiro painel do colóquio – Repúblicas Ibéricas: Desafios de Educação, Formação e Cidadania. O catedrático de História da Educação recuou, depois, à Revolução Francesa, cujos valores influenciaram em grande medida a “revolução” do pensamento em Portugal e Espanha. “Aí ficam claras as posições que hão-de ocupar a razão e a educação numa concepção optimista do Homem: o Homem pode melhorar, pode ser mais fraterno, solidário, participativo; pode defender melhor os seus direitos se está mais e melhor educado. É daí que arranca a aposta decisiva na educação para todos”, afirmou. Acentuando o eixo ibérico da sua intervenção, Hernández Díaz lembrou homens como Bernardino Machado e Giner de los Rios, que “representam a aspiração à modernidade, a defesa do pensamento republicano e das formas de racionalidade participativa”, ideias que vão penetrando a pouco e pouco nas sociedades portuguesa e espanhola. Frisou, também, o importante papel de Alice Pestana, pedagoga portuguesa que difundiu por terras vizinhas os êxitos, as aspirações e os riscos da Primeira República portuguesa, que tinha “urgências enormes para corrigir o drama do analfabetismo, a urgência de escolas, o impulso da educação popular, do tratamento das crianças e das pessoas que são marginais”. Percorrendo os casos português e espanhol, o catedrático referiu a interrupção do modelo republicano pelo salazarismo e pelo franquismo (“parecidos, mas com as suas diferenças”), que trataram de erradicar a modernidade. Não havendo “mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe”, o processo da escolaridade obrigatória – uma das aspirações dos republicanos de 1910 e de 1931, respectivamente em Portugal e Espanha – ficou concluído. Mas esse avanço significativo “não nos deve tornar conformistas. Temos de aspirar a que essa seja uma escola de qualidade, de melhoria, de participação, de recursos e de bons critérios, de formação de cidadãos e não só de tecnocratas para o exercício de determinadas competências que mandam os interesses dominantes”, concluiu José Hernández Díaz.
Já Manuel Loff (Universidade do Porto) centrou-se nas políticas educativas da República portuguesa, numa apresentação que intitulou “Das intenções generosas ao desengano da realidade”, recuperando um título de António Nóvoa. O docente de História e de Estudos Políticos Internacionais descreveu os três ciclos reformistas republicanos, que começaram em 1911 e passaram pela refundação da República, após a maioria das elites políticas republicanas terem comprometido Portugal na I Guerra Mundial e de se ter seguido um período de instabilidade. “Esse foi um dos grandes erros da República”, apontou, relembrando a tentativa, levada a cabo em 1919, de voltar a ligar a República às camadas populares, numa acção em que “as reformas de Leonardo Coimbra constituíram um impulso importante e foram aplicadas, ao contrário do terceiro ciclo reformista”.
Corria o ano de 1923, quando João Camoesas apresentou uma proposta de reforma global do sistema educativo. “Foi a primeira tentativa historicamente realizada em Portugal de reformar de cima a baixo o sistema educativo, desde o pré-primário até à universidade, de forma articulada, coordenada e com um grau de autocrítica sobre a política republicana muito significativo”, afirmou o docente. Se em 1911 o objectivo era “escolarizar para formar o cidadão republicano”, em 1923 importava, também, “promover a justiça social”.
De acordo com os dados apresentados pelo docente/investigador da Faculdade de Letras, a República não ampliou a escolaridade obrigatória, manteve-a em três anos, mas aumentou generosamente, para oito anos, a gratuitidade da escolaridade. Na legislação de 1911, a escolaridade obrigatória manteve-se de três anos (o chamado Ensino Primário Geral), havendo depois mais dois anos de Ensino Complementar e três de Ensino Primário Superior. “Era a grande reforma republicana”, salientou, lembrando que a República introduziu a co-educação e efectuou uma reforma profunda na universidade, pondo fim ao monopólio de Coimbra.
É na área da formação de professores que, segundo Manuel Loff, as reformas republicanas têm mais impacto. “Há um reforço evidente da qualidade, da exigência, da dignidade da formação do pessoal docente. Mas a verdade é que só ocorrem a partir de 1919 e terão, do ponto de vista estatístico, resultados decepcionantes”, sublinhou.
“Conscientes ou não das suas dificuldades em promover a mudança, os republicanos produziram políticas educativas utópicas, carregadas de intenções reformistas progressistas, mas não se empenharam em reunir condições práticas para a sua efectivação”, adiantou Manuel Loff, contrapondo que, do ponto de vista social, “a escola salazarista foi muito mais eficaz do que a republicana, porque chegou a toda a gente e teve a oportunidade de manipular praticamente toda a gente”.
A Escola era um elemento central no projecto republicano de construção da cidadania, mas esse processo era “elitista”, considerou. A República tentou emancipar o indivíduo através da Escola, mas com apenas uma das condições reunida – a mobilização da classe docente. “A Escola era um instrumento central de transformação social”, mas tentando mudar apenas através da escola, não mudando o resto da sociedade, “a mudança desacredita-se”.

Os desafios da classe docente

O segundo painel – Professores e República: Desafios de Autoridade Profissional e Cívica – reuniu três convidados que têm em comum o desempenho do cargo de secretário-geral da Federação Nacional dos Professores (Fenprof), desde a sua criação até aos dias de hoje. Recuperando ideias já publicadas [«Professores, para quê? Mudanças e Desafios na Profissão Docente», ProfEdiçoes], António Teodoro começou por alertar para o papel do professor, que definiu como um “militante da justiça social” – só pode ser professor aquele que acredita que a sua acção pode emancipar alguém – e uma “espécie de investigador da sala de aula”, que transforma os objectivos gerais em trabalho concreto.
Depois, o primeiro secretário-geral da Fenprof destacou o que considera serem as duas crises visíveis da Escola. A primeira é uma crise de modelo: “A Escola foi construída para ensinar a muitos como se fosse a um só. A Escola não foi criada para incluir, para lidar com a diferença, mas para criar uma cultura que se sobrepusesse a todas as outras. Pede-se agora que a Escola já não seja isso, que inclua todos e que se respeite as suas culturas, as suas línguas. A Escola não foi feita para isso, e hoje temos um mandado de inclusão com um modelo que não foi feito para isso”. A segunda crise é a do sentido da Escola: “Estudos sociológicos mostram que os jovens até gostam da escola, mas detestam as aulas. Ou seja, é uma questão de sentido das aprendizagens. É extraordinariamente difícil ensinar e aprender quando não vemos sentido naquilo”, frisou António Teodoro (Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias). Por seu lado, Paulo Sucena, membro do Conselho Nacional de Educação e presidente do Conselho Geral do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (SPGL), recordou que “o caminho do professorado ou da classe docente, desde a Primeira República até hoje, é uma evolução fantástica” e sublinhou a preocupação da República na formação dos cidadãos, no combate ao analfabetismo, que se situava acima dos 70%, e na política que permitiu que muitas mulheres tivessem acesso, a partir da conclusão do Ensino Primário, às escolas normais.
O também ex-secretário-geral da Fenprof considerou que, hoje em dia, os professores precisam de ter outra visibilidade na sociedade portuguesa, à semelhança da que tinham os professores de outros tempos. “O posicionamento dos professores perante os problemas sociais e da sociedade e as atitudes que têm perante eles são fundamentais para a formação do aluno”, referiu. Sobre o papel de facilitadores das aprendizagens, atribuído aos professores, sublinhou que “mais do que ensinar e mais do que transmitir, mais do que mostrar que se é o centro do conhecimento e do saber, é fazer com que os alunos tenham uma aprendizagem que lhes permita progredir. Aprender é fundamental, e ao aprender a conhecer, a fazer e a ser, junto o aprender a ‘viver juntos’, que é o sentido da interajuda e da solidariedade”.
Tendo em conta as investidas contra os professores, Paulo Sucena concluiu que “é preciso lutar até ao fim, porque, se a democracia dentro das escolas começa a abastardar-se, é a nossa própria democracia que está em causa”.
Sublinhando que “o papel do professor é extremamente complexo e difícil de assumir e desenvolver”, Mário Nogueira começou por descrever o actual quadro em que se desenvolve a acção dos professores, lembrando “contradições que resultam de uma cada vez maior transformação dos docentes em meros agentes de execução de políticas e de aplicação de medidas das quais muitas vezes discordam, mas que têm de aplicar, destinando-se a sua acção a garantir a reprodução do sistema social”.
Revisitando a aposta republicana na educação, o actual secretário-geral da Fenprof referiu que “os professores souberam assumir as suas responsabilidades, sendo exigentes para consigo mesmos, na sua intervenção na Escola e na sociedade – que, aliás, nunca dissociaram, independentemente da expressão que deram a essa intervenção”.
“Foi uma procura constante e uma construção permanente, apenas interrompidas após a instauração da ditadura”, que desmembrou e dissolveu movimentos e sindicatos e desvalorizou a função docente. Contudo, “os professores resistiram, resistiram sempre, mesmo em alguns dos momentos mais duros da tenebrosa noite fascista”.
Tendo em conta que o passado deve servir como referência para a construção do futuro, e acreditando que a profissão de professor é uma profissão de futuro, Mário Nogueira lembrou que “a Internacional de Educação estabeleceu um conjunto de compromissos que os docentes deverão assumir com a profissão, com os estudantes, com os colegas, com a direcção das suas escolas – que se exige seja re-democratizada – e com os pais”.
O colóquio teve lugar no auditório do Conservatório de Música do Porto. Assinalando o centenário da implantação da República e o Dia Mundial dos Professores (5 de Outubro), foi organizado pela «A Página da Educação», em colaboração com a ProfEdições e o Sindicato dos Professores do Norte.

Maria João leite

MOMENTO MUSICAL. O Coro de Pais do Conservatório de Música do Porto abrilhantou o colóquio com um conjunto de canções. Fundado em 2006/2007, por iniciativa da direcção do Conservatório, com a colaboração do professor-maestro António Diogo, o coro tem por objectivo a integração dos pais no ambiente musical da escola – como sempre se juntam vários pais no final das aulas, é também uma forma de os ocupar no tempo de espera. Normalmente composto por 25 ele mentos, é renovado anualmente com a entrada de pais de novos alunos; actualmente, conta também com três avós. Participa regularmente em audições no Conservatório, mas também em vários concertos externos, muitas vezes acompanhado por orquestra – nomeadamente pela Orquestra dos Alunos, sua parceira natural.


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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