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Literacia, media e cidadania

Nós, que “vemos, ouvimos e lemos” e não deveríamos ignorar, ou fazemos de conta, ou, o que é mais preocupante, nem nos apercebemos que o défice de informação pública constitui uma permanente ameaça à vida das pessoas e à vida democrática.

Em tempos sombrios e conturbados como aqueles que vivemos, a qualidade do jornalismo que se pratica pode fazer toda a diferença. Tanto serve para ajudar as pessoas a situarem-se, a precaverem-se e a mobilizarem-se, como a desorientarem-se, dividirem-se e mergulharem na confusão. Os tempos de crise, pela instabilidade que geram, são particularmente propícios às meias-verdades, aos rumores e às jogadas dos interesses que procuram tirar proveito da situação. Todos dependem da informação de interesse público, mas, enquanto uns lutam por ter acesso a informação segura, outros difundem o que mais lhes convém, na ânsia de salvaguardarem os seus próprios interesses, mediante o condicionamento da vida dos outros. É assim na bolsa, é assim no jogo político.
Um dos caminhos mais seguros para enfrentar estes desafios passa pelo desenvolvimento de conhecimentos e competências críticas e, mais especificamente, pela educação para os media. Esta formação, que hoje se considera cada vez mais central na formação dos cidadãos, deve naturalmente incluir, como um dos seus eixos, a literacia relativamente à informação jornalística e à actualidade. É, também, no seu âmbito que se pode desenvolver uma percepção aguda dos direitos e deveres de cidadania perante o jornalismo, ou, por outras palavras, o que nos cabe exigir dele enquanto cidadãos. Exemplifiquemos.
O dirigente de uma associação de empresários da indústria têxtil queixava-se recentemente, numa estação de rádio, que, apesar das elevadas taxas de desemprego, os patrões estavam a encontrar dificuldade em arranjar quem quisesse trabalhar para responder ao aumento das encomendas oriundas do estrangeiro, que se têm verificado desde meados de 2010. Uma notícia destas chama logo a atenção pelo insólito do caso, tanto mais que o empresário não se coibia de comentar que o motivo da situação residia no facto de muitos trabalhadores recusarem a oferta de trabalho, preferindo o subsídio de desemprego. Como quem insinua: “há trabalho, eles é que não querem trabalhar”.
No exercício do seu dever profissional, a jornalista da estação que dava a notícia foi ouvir uma dirigente sindical dos têxteis que apresentou uma versão um pouco diversa: a eventual recusa do trabalho devia-se, se bem entendi, ao facto de serem propostos salários não só abaixo do salário mínimo, como até abaixo do subsídio de desemprego. E por aqui ficámos, porque a mais não tivemos direito.
Ora, do ponto de vista da deontologia jornalística, foram cumpridos todos os preceitos, nomeadamente o de ouvir “a outra parte”. Mas a verdade é que, enquanto cidadãos e interessados nessa informação, ficamos sem saber quem tem razão – ou, até, se há mais do que uma razão. Para tal seria necessário ir mais longe no trabalho jornalístico; ir para o terreno, como costuma dizer-se, ir conhecer casos e situações, perspectivas e razões, de modo a habilitar-nos a fazer um juízo sobre o problema.
É a mesma coisa quando há uma greve ou uma manifestação. Os sindicatos adiantam um número ou índice de participação. O Governo define um valor radicalmente distinto. Onde está a verdade? Como se assegura o direito dos cidadãos a uma informação relevante, completa e verdadeira?
Muitos jornalistas sabem bem que é assim que o trabalho deve ser feito, mas também é verdade que os tempos não vão favoráveis ao investimento na reportagem e na investigação. E a cidadania, claro, é que paga.
Mas nós, que “vemos, ouvimos e lemos” e não deveríamos ignorar, ou fazemos de conta, ou, o que é mais preocupante, nem nos apercebemos que este défice de informação pública constitui uma permanente ameaça à vida das pessoas e à vida democrática.
É neste contexto que ganha especial significado a iniciativa que um grupo de instituições públicas preocupadas com estas matérias vai promover, em Março próximo, na Universidade do Minho. Trata-se do congresso nacional Literacia, Media e Cidadania, dirigido a docentes, investigadores, animadores culturais, bibliotecários, responsáveis políticos e, naturalmente, também aos profissionais dos media. Será um tempo de tomada de consciência daquilo que já se vai fazendo e, sobretudo, do muito que há a fazer no âmbito da educação para os media.

Manuel Pinto


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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