Página  >  Edições  >  Edição N.º 190, série II  >  Ler, escrever... compreender e agir

Ler, escrever... compreender e agir

Se observarmos a compra de produtos alimentares não vemos as pessoas a olharem muito tempo para os rótulos. Será que já sabem o que dizem, compreendem o significado e compram conscientes do que é melhor? Ou, por tão difícil de compreender o significado e por confiarem plenamente na indústria, simplesmente não valorizam o que metem dentro de si?

Quando pensamos na escola, pensamos em aprender. Para quê? Para que quero eu, para que querem os outros aprender? Conseguir ler um rótulo de um produto alimentar serve apenas para nutrir a minha curiosidade intelectual? Que me interessa a mim que o produto em causa tenha xilitol? Consigo ler a palavra, até a consigo reproduzir, quer oralmente, quer por escrito. Mas o que significa? Se não conheço de todo o significado, é igual a não estar lá? Incomoda-me meter algo dentro de mim que não sei o que é? Se simplesmente ignorar, o que me vai acontecer? Provavelmente, nem vou notar. Afinal, se está à venda num país desenvolvido, é porque é seguro ingerir. Então, nem sequer me preocupa. Gastar neurónios e tempo de pesquisa no dicionário, na internet, com isso? Para quê? Prefiro divertir-me. O prazer pelo prazer. Afinal a vida é tão curta! Será que aquela “coisa” me ajuda a prolongar ou a encurtar a vida? Ou nem sequer tem efeito?
E este é um dos milhares de ingredientes que os rótulos dos alimentos expõem todos os dias. É preciso tirar um curso só para compreender o que lá está escrito. E se não quero esforçar-me, arrisco-me a saber coisas contraditórias sobre o mesmo ingrediente provenientes de fontes diversas. Desde as revistas cor-de-rosa ao amigo que disse, ao jornal que alerta, ao programa de TV que esmiúça, há sempre alguém que valoriza de forma diferente o ingrediente... Mas afinal faz mal à saúde, faz bem à saúde, pelas propriedades laxantes evita que outros nutrientes sejam absorvidos ou impede que a glicose entre tão rapidamente na corrente sanguínea, evita a cárie ou...
O que quer tudo isso dizer e que consequências tem no meu corpo a curto e a longo prazo? E os aditivos com aqueles códigos que não se compreendem? E ingredientes ainda mais comuns: os açúcares? Estão ou não englobados nos hidratos de carbono? Excluem ou incluem o amido, que pertence aos hidratos de carbono complexos?
Se isto é linguagem hermética para si, que compra os produtos, o que pensa da responsabilidade de o entregar ao seu filho, que confia na sua sabedoria? E a criança? Vale a pena preocupar-se? O valor que damos às coisas reflecte-se na forma como nos comportamos. Se observarmos a compra de produtos alimentares nos supermercados, não vemos as pessoas a deter-se muito tempo a olhar para os rótulos dos alimentos. Será que já sabem o que diz, compreendem o seu significado e compram conscientes de que é o melhor para as necessidades do corpo a quem se destina o alimento? Ou será que, por tão difícil de compreender o significado e por confiarem plenamente na indústria que os produz, simplesmente não valorizam o que metem dentro de si? E onde aprenderam a valorizar o que lêem?
O que fazem as nossas crianças quando não entendem o que lêem? Ignoram, perguntam ao professor, perguntam aos pais, perguntam aos amigos, perguntam aos explicadores, consultam os dicionários e enciclopédias, pesquisam na net? É sistemática essa procura? Esse esforço de compreender existe realmente ou é aparente? Numa sociedade em que o volume de informação é enorme e se renova a um ritmo alucinante, há momentos sistemáticos de pausa, de pesquisa, de “digerir” a informação?
Alguém disse que, hoje em dia, quase não usamos os dentes porque já vem tudo “mastigado”. Mas o estômago não tem dentes de propósito. Junto dos dentes, na boca, há produção de saliva com enzimas que servem para digerir apenas parte da comida que entra. A digestão é feita por fases, não é instantânea nem toda de uma vez. O sabor que retiramos da mastigação e ensalivação dos alimentos é determinante para o prazer. Saborear, apreciar, degustar enquanto se mastiga, faz evoluir o prazer. Demorar 10 segundos na boca não é igual a um segundo. E falo apenas de prazer, já para não falar na digestão, nessa transformação do alimento em partículas cada vez menores e com formas passíveis de serem absorvidas e integradas nas nossas células.
A natureza preparou-nos para as “fases”. A informação que chega aos alunos, nas escolas, também é melhor compreendida se chegar por fases e não de forma instantânea. O método expositivo é o mais rápido para se cumprir o programa, mas será o mais eficaz? Quando a informação chega por “fases” e é “mastigada” – no sentido de triturada, discutida, debatida, esmagada, esmiuçada – acaba por ser integrada pelo aluno, pois foi vivenciada, experienciada durante mais tempo. Quando metemos um alimento dentro de nós, ele transforma-se em nós. Quando a informação é digerida, serve para a vida.

Débora Cláudio

Nutricionista


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo