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Pode a educação compensar a sociedade?

A centralidade refundadora da educação e formação de adultos permanece refém entre o engodo produtivista e a armadilha compensatória. Vale a pena lembrar que a educação é também uma política cultural e que não pode compensar a sociedade.

Que a educação e formação de adultos ganhou um relevo inédito nas políticas educativas europeias e que a educação tem, desde há 20 anos, uma centralidade acrescida nas políticas da União Europeia, constituem duas constatações mais ou menos redundantes. Perguntar que educação (e formação de adultos) é esta que, assim, vem sendo alcandorada a tão fulgurante posição é uma questão talvez menos habitual e de resposta menos óbvia. Questionar por quetal sucede abre a controvérsia, mesmo se as novidades continuam a escassear. Intervindo num debate distinto, mas relacionado, há cerca de 40 anos, Basil Bernstein advertia que “a educação não pode compensar a sociedade”, mas que pode, isso sim, difundir a cultura científica, formal e erudita por toda a população [em «Sociologia da Educação II (antologia). A Construção Social das Práticas Educativas», Sérgio Grácio & Stephen Stoer].
Recentemente participei em diversos debates sobre o porquê do ‘regresso’, desde os anos 90, da aprendizagem ao longo da vidae que refundação da educação está a ocorrer com esse retorno. O Plano de Acção para a Educação de Adultos (União Europeia, 2007) e o Marco de Acção de Belém (UNESCO/VI CONFINTEA, 2009) foram o pretexto e o mote das discussões. A situação de prolongada crise económica e social estrutural, as visões à volta da economia e sociedade de conhecimento e de risco, as revisões do contrato social e do regime do Estado de Bem-Estar, os mandatos de sustentação da competitividade e da coesão social, que acompanham esta centralidade refundadora da educação, deveriam pôr-nos de sobreaviso quanto à pesada carga que assim vem sendo assacada a este sector tão interdependente quanto essencial.
Nas discussões, alguns participantes vincaram como as formulações e propostas do Marco de Acção falam uma linguagem de ‘direito à educação’, de capacitação cívica e de justiça social, quando o Plano de Acção aponta qualificação, integração social e validação de competências. Um dos intervenientes captou mesmo a ‘intimidade’ entre educação e economia, com mais economia do que educação, no Plano de Acção. Outro disse que o Marco de Acção mantém o registo ‘teórico’ e ‘aspiracional’, mesmo utópico, que marcava já o movimento da educação permanente há 40 anos. E contrastava com o registo mais operacional e legitimatório do Plano de Acção.Mas um dos intervenientes defendeu a pés juntos que os dois documentos estão muito próximos num aspecto que ele julga umbilicalmente ligado àquela centralidade refundadora a que a educação é alcandorada: a criação e a alimentação da expectativa de que a educação possibilita a realização pessoal, a inclusão e justiça sociais, a cidadania e a empregabilidade; de que sustentará a competitividade e a coesão social, sobretudo quando e porque a crise económica e social distribui menos os rendimentos, cria sociedades duais (dois terços/um terço), produz fracturas e riscos sociais. Então, dizia ele, quanto menos a economia e a sociedade respondem às aspirações e expectativas, mais a educação é chamada a ser a grande reguladora. Num discurso mais utópico ou num registo mais tecnocrático, ambos os textos acabam a alimentar a mistificação que vem também criando uma ‘indústria’ da educação e da formação.
Em 2001 escrevíamos: “a prioridade à ampliação das oportunidades e à elevação dos níveis de educação e formação como via para promover a consolidação e desenvolvimento dos direitos de cidadania e para fomentar a competitividade das economias parece poder constituir-se como agenda política e teórica credível, se forem igualmente viabilizadas polí ticas económicas, industriais e de emprego assentes na valorização do trabalho qualificado e na criação e partilha de empregos com base numa nova articulação de direitos e compromissos sociais” [«Educação, cidadania e competitividade: algumas questões em torno de uma nova agenda teórica e política», Almerindo J. Afonso & Fátima Antunes].
Em 2010, a centralidade refundadora da educação (e formação de adultos) permanece refém entre o engodo produtivista e a armadilha compensatória. Vale a pena lembrar que a educação é também uma política cultural e, com Basil Bernstein, que Education cannot compensate for society.

Fátima Antunes

Universidade do Minho


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

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