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Sobre a insustentável leveza das palavras

No quadro de legitimação de uma ordem política, económica e social mais conforme aos princípios e valores do credo neoliberal, as palavras assumem hoje uma insustentável leveza. Na área da educação escolar, os exemplos abundam e têm vindo a proliferar.

Temos vindo a assistir, nos últimos anos, à tentativa de legitimação de uma nova ordem civilizacional que, afinal, só visa destruir os alicerces de um modelo de sociedade que, no caso do Ocidente e, sobretudo, após a II Guerra Mundial, encontrou na aliança entre o capital industrial e a democracia representativa o sustentáculo da matriz política que hoje tende a ser identificada como retrógrada e ultrapassada.
Embora estejamos perante um projecto cujos contornos se vêm revelando, há muito tempo, a coberto das concepções e decisões que algumas instituições, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial ou a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico (OCDE), e os próprios governos têm vindo a assumir, cremos que tem sido a partir de meados da década de 90 e, particularmente, nas crises que ocorreram no sistema financeiro mundial, já no decurso do séc. XXI, que tal projecto adquiriu uma visibilidade sem precedentes.
Visibilidade que está presente, por exemplo, na proposta de Pedro Passos Coelho quando defende que a Constituição revista, segundo a sua vontade, deve substituir a expressão “despedimento sem justa causa” por “despedimento sem razão atendível”, mesmo que, como sublinham alguns comentadores, tal proposta seja tão inexequível quanto inútil. Inexequível, porque uma revisão constitucional exige dois terços de votos no Parlamento; inútil, porque, a exemplo do que defendia um ex-dirigente de uma associação patronal, a expressão em causa não colide com a possibilidade da lista de despedimentos sem justa causa se liberalizar um pouco mais, o que, na sua opinião, seria a medida mais sensata que se poderia e deveria tomar.
Eis-nos, assim, perante um episódio exemplar da insustentável leveza que as palavras assumem hoje no já referido quadro de legitimação de uma ordem política, económica e social mais conforme aos princípios e valores do credo neoliberal. Neste caso, é o ex-dirigente da associação patronal que constitui o bom exemplo a seguir, tal como tem vindo a ser demonstrado, aliás, pelos discursos políticos que embrulham algumas das medidas mais emblemáticas dos governos do Eng.º Sócrates. Passos Coelho, neste caso, constitui o mau exemplo, já que sacrificou no altar do jogo político, onde tem de fazer de conta que é oposição ao PS, a possibilidade de utilizar artificiosamente as palavras, de forma a que estas possam, mais do que revelar, ocultar – e, ao ocultarem, permitam tornar aceitável algo que, em princípio, parece poder contrariar o seu significado original.
No campo da educação escolar, os exemplos não só abundam como têm vindo a proliferar. Fecharam-se e fecham-se escolas em nome dos interesses educativos e pedagógicos dos alunos, quando o que está em jogo é, apenas e somente, uma gestão dos recursos financeiros que apela à eficiência para não admitir alternativas plurais que possam ter em conta a qualidade da vida desses alunos e as lógicas de subsidiariedade que deveriam caracterizar a vida nas sociedades democráticas.
Avança-se no projecto dos mega-agrupamentos como uma medida indiscriminada que se justifica em nome de putativas políticas educativas locais que possam incentivar a uma maior articulação curricular e pedagógica entre ciclos, de forma a escamotear-se a necessidade de corrigir a decisão do governo anterior relativa ao novo modelo de gestão das escolas, cujos custos financeiros parecem ser, hoje, excessivos e incomportáveis.
Propõe-se a avaliação de desempenho de professores como a solução para os problemas da Escola Pública, a fim de que esta se possa tornar num contexto educativo mais inclusivo e capaz, quando, na verdade, o que se visa é hierarquizar professores, de forma a impedir por via administrativa que a maioria desses professores possa alcançar o topo da carreira, mesmo que tenham dado mostras de assumir um desempenho que o justifique, o que, no mínimo, é uma decisão contraproducente face ao propósito que legitima uma tal decisão.
No seio das nossas escolas, e em nome de projectos educativos mais inclusivos, assiste-se hoje a decisões e actividades que contribuem para promover formas de discriminação tão penalizantes como as reprovações massivas do passado, cuja aceitabilidade é directamente proporcional ao conteúdo dos discursos que modelam aqueles projectos e à subtileza formal dos mesmos. Trata-se de uma prática que, não sendo objecto de interpelação política, acaba por sustentar o discurso vocacionalista que reemerge de uma forma tão vigorosa que acaba por constituir, reconheça-se, uma das bandeiras estratégicas dos governos de Sócrates na área da educação escolar.
Proclama-se Bolonha, no Ensino Superior, para que a formação neste âmbito possa gravitar, finalmente, em torno da aprendizagem dos alunos, o que constitui a máscara de uma política que legitima, por esta via, a concretização do princípio do utilizador/pagador, o qual se agita alto e a bom som quando se trata de pagar as SCUT [auto-estradas sem custo para os utilizadores] , e se silencia no caso das universidades e dos institutos politécnicos para não se ter que responder àqueles que demonstram existir quer uma contradição entre o aumento das propinas e a invocada necessidade de capacitação técnico-profissional dos jovens portugueses, quer uma contradição entre o referido aumento de custos e a igualdade de oportunidades que se assume, pelo menos em termos discursivos, como um eixo fundamental da política educativa dos governos.
Enfim...

Ariana Cosme
Rui Trindade

Universidade do Porto


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

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