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Conhecimento realmente útil

Quando o conhecimento é usado para proteger ou enaltecer interesses sectoriais, deixa de ser realmente útil. E o oposto de ‘conhecimento realmente útil’ não é ‘conhecimento realmente inútil’, mas potencialmente ‘conhecimento realmente perigoso’.

Muito se tem falado sobre que conhecimento deveria ser ensinado nas escolas e nas universidades e, mais do ponto de vista filosófico, sobre que conhecimento tem mais valor. Gostaria de aqui abordar esta questão, mas com o intuito de discutir o que constitui, de facto, conhecimento realmente útil nos dias de hoje. A ideia de ‘conhecimento realmente útil’ nasceu, em meados do século XIX, na Grã-Bretanha, no período da Revolução Industrial. Por essa altura, os patrões começaram a perceber que, com um pouco mais de formação e conhecimento, os seus empregados tornavam-se mais produtivos, pelo que os encorajavam, e até certo ponto apoiavam-nos, a adquirir conhecimento “útil”, ou seja, as diversas e significativas formas de conhecimento técnico que fossem úteis em contexto de trabalho. Porém, alguns grupos de trabalhadores viram para além desta suposta generosidade e procuraram o chamado ‘conhecimento realmente útil’, ou seja, aquele que os patrões tentavam que eles não adquirissem, nomeadamente sobre as formas como se obtinham os lucros ou sobre a razão das desigualdades entre ricos e pobres na sociedade. Para isso, procuraram esse conhecimento realmente útil não em institutos técnicos, mas sim na Filosofia, na Economia, na Política, etc. Essencialmente, procuraram conhecimento sobre as formas como as suas vidas eram controladas e sobre como poderiam recuperar algum desse controlo. Isto fez-me pensar sobre o que constaria, hoje, do que se chama ‘conhecimento realmente útil’ e o que se segue são apenas algumas sugestões incompletas que visam estimular o debate, não tendo qualquer carácter definitivo. Assim, começo por esquematizar três bases possíveis para o que possa ser ‘conhecimento realmente útil’ na actualidade. A primeira refere-se à sustentabilidade do conhecimento. É fácil comparar sustentabilidade e progresso como princípios orientadores alternativos para um mundo potencialmente pós-neoliberal, mas substituir o progresso pela sustentabilidade como uma lógica dominante de intervenção no mundo natural e social representa uma mudança de perspectiva considerável e positiva. O progresso tende, simplificando muito, a ser um progresso para poucos à custa de muitos, sendo que os benefícios desse progresso podem reverter, eventualmente e com dividendos, para muitos. Porém, os custos ambientais do progresso também se estendem a muitos. Contudo, a base de conhecimento necessária para a mudança no sentido de uma lógica de intervenção ainda está só a começar e é ainda amplamente contestada. Em primeiro lugar, precisamos de nos focar nos custos integrais de um progresso sustentável e não apenas no preço imediato para o conseguir.
A segunda base para o ‘conhecimento realmente útil’ actual é a de conhecer a distribuição de conhecimento e não apenas a sua produção. Podemos dizer – tal como Amartya Sen demonstrou que a fome não resulta de falta de comida para alimentar as populações, mas da sua errada distribuição – que a ignorância, ou a ausência de ‘conhecimento realmente útil’, não é provocada por uma falta de conhecimento, mas antes pela sua distribuição desigual. Precisamos de saber quem tem acesso a que conhecimento e como essa distribuição é feita, pelo que, para ser realmente útil, o conhecimento deve ser partilhado e acessível, como um verdadeiro bem público, ao invés de ser controlado por interesses políticos e comerciais. Obviamente, para que isto seja possível, tem de haver conhecimento público sobre esses interesses. A terceira é bastante diferente e relaciona-se com o conhecimento da quantificação.
Conhecer como fazer essa quantificação e como é que ela é usada é particularmente importante numa era em que nos sentimos cada vez mais governados pela quantificação, o que é uma consequência do relativamente escasso e desigualmente distribuído conhecimento da quantificação e das suas possibilidades. Por exemplo, estamos todos familiarizados com os maus usos da quantificação em rankings relativos à educação. Como argumentei num outro artigo da PÁGINA, tendemos a ser obsessivos quanto às posições relativas nesses rankings e, por conseguinte, distraídos sobre o que eles realmente medem e significam.
Num exemplo bastante diferente de como a quantificação pode ser usada para velar em vez de esclarecer, o economista canadiano Benoit Godin mostrou como, em alguns relatórios da OCDE [Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico], as tabelas de estatísticas são introduzidas para esconder lacunas nos argumentos.
A quantificação é uma ferramenta altamente poderosa e importante, e um elemento crucial do ‘conhecimento realmente útil’, mas as formas como pode ser usada não são necessariamente benéficas para todas as camadas da sociedade. Quando o conhecimento é usado para proteger ou enaltecer interesses sectoriais, deixa de ser realmente útil. E o oposto de ‘conhecimento realmente útil’ não é ‘conhecimento realmente inútil’, mas sim, potencialmente, ‘conhecimento realmente perigoso’.

Roger Dale

Universidade de Bristol


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

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