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Construir o avião enquanto se voa

Se o professor levar em consideração as particularidades e as singularidades dos processos de aprendizagem dos alunos e estiver interessado em que todos aprendam, sem desistir de nenhum deles, o processo de ensino torna-se menos previsível, menos capaz de seguir um planeamento estrito e prévio.

As ciências humanas sempre se debateram com uma secreta inveja das ciências exactas. Todo aquele método experimental, as demonstrações, a linguagem experimental inexorável permitia um discurso alicerçado numa aura de maior seriedade e rigor. A Pedagogia, nascida como “arte de ensinar”, ainda sonhou com este caminho e, seguindo as pegadas da psicologia experimental, concebeu salas de aula como grandes laboratórios de ensino em que os professores (vestidos de bata branca) procuravam criar um método de ensino com um estatuto científico próximo das ciências exactas. Pensava-se a sala de aula como palco de uma ciência exacta que era o ensino e os alunos como destinatários desta ciência de transmitir conhecimentos. Este processo cedo se mostrou “bom (ou mau?) de mais para ser verdade” e constatou-se que uma sala de aula necessita de uma cultura científica que não persiga o paradigma das ciências exactas.
O paradigma das ciências exactas evidencia grandes insuficiências quando aplicado à Educação. Antes de mais, porque entre o ensinar e o investigar existe uma diferença fundamental: na investigação planeia-se primeiro e actua-se depois numa perspectiva sequencial; pelo contrário, no ensino, o pensar e o agir não têm este intervalo e acontecem simultaneamente. Um outro aspecto que afasta o ensino deste tipo de investigação é a previsibilidade: na investigação clássica, pelo menos a metodologia é concebida de forma antecipatória e, portanto, previsível; no ensino, pelo contrário, as metodologias e os objectivos concebidos antecipadamente podem ser modificados (e muitas vezes são) e são, portanto, muito imprevisíveis.

Imprevisíveis, sempre?

Sempre que o professor estiver empenhado na aprendizagem de todos os alunos. Se este desiderato não fizer parte das suas preocupações, é talvez possível que possa avançar com um grupo restrito de alunos usando uma metodologia sequencial e previsível. E aqui se levanta um primeiro nó da questão: o ensino que se preocupa com a aprendizagem de todos é certamente concebido com uma margem maior de incerteza e imprevisibilidade do que o ensino que se preocupa exclusivamente com a sequência dos conteúdos, com os exercícios, com o treino e com “os alunos que estão motivados”. Se não se pensar em “alunos-padrão”, aumenta a imprevisibilidade.
Assim, sempre que o professor levar em consideração as particularidades e as singularidades dos processos de aprendizagem dos alunos e esteja interessado que todos aprendam (isto é, sem desistir de nenhum deles), então o processo de ensino torna-se menos previsível, menos capaz de seguir um planeamento estrito e prévio. Isto não significa que o planeamento dos conteúdos, das estratégias de ensino, das oportunidades de aprendizagem, não seja importante. Diria até que é essencial. O planeamento prévio do que vai acontecer na sala de aula é um processo complexo e muito diferenciado.
Já encontrei professores que partilham com os alunos o planeamento; outros preferem fazê-lo com colegas; outros que preferem elaborá-lo sozinhos aproveitando para um saudável exercício de reflexão pessoal. O planeamento é fundamental, mas a flexibilidade não o é menos. Como resolver este dilema?
Não tenho respostas definitivas, mas daria duas contribuições para discutir esta aparente dicotomia entre planeamento/flexibilidade. A primeira é procurar um planeamento que considere mais do que uma forma de desenvolver as actividades. A segunda é procurar assegurar que a flexibilidade da intervenção educativa se passe dentro de certos limites. Por vezes pensa-se que flexibilidade é aceitar como boa qualquer contribuição dos alunos, mesmo que esteja fora do contexto de aprendizagem. Por exemplo, “ele não sabe identificar figuras geométricas mas sabe os nomes de todos os gelados”. Isto não é flexibilidade, é dispersão. Precisamos, assim, de um planeamento mais versátil nas suas propostas e com uma flexibilidade que não se confunda com “vale tudo”.
E regressamos à particularidade das ciências humanas. De como elas têm critérios de verdade, de verificação, de comprovação, que são diferentes das ciências exactas. E aqui, de novo, ser diferente não quer dizer ser menor. Na verdade, os professores fazem em termos de engenharia um feito dificilmente igualável: eles vão construindo o avião ao mesmo tempo que voam.
Não negamos que planear e construir o avião em terra é um procedimento sensato e com acrescidas possibilidades de êxito; só que, quando se quer desenvolver um ensino que não seja só um treino ou uma transmissão, quando se levam em conta as diferenças entre os alunos, quando há uma preocupação em não deixar ninguém para trás, então, vamos planeando e construindo enquanto ensinamos.
Planear e construir com os alunos não quer dizer que todo o conhecimento é construído – significa que alguns tipos de conhecimento só fazem sentido quando o aluno é implicado no processo da sua aquisição e que, mesmo em matérias mais “inquestionáveis”, continua a ser indispensável contextualizar os conhecimentos através de exemplos e de ligação à prática.
Construir o avião com os alunos enquanto se voa não é lá muito seguro, mas ser professor neste começo do séc. XXI é uma profissão de risco...

David Rodrigues

Pró-Inclusão - Associação Nacional de Docentes de Educação Especial


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

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