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Crianças não escapam à volúpia do mercado

“A característica mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em mercadorias”.

[Zygmunt Bauman]

Conforme vamos refletindo e também conhecendo e nos apropriando do pensamento de diversos analistas da contemporaneidade – Bauman, Jameson, Harvey, Bocock, Sennet e muitos outros –, vamos fortalecendo o entendimento de que o consumo se transformou em dominante cultural, em eixo organizador da sociedade.
Bauman afirma que na condição pós-moderna, vivemos em uma “sociedade de consumidores”, na qual o consumo se manifesta como ímpeto constante e irrefreável de obter para imediatamente descartar e substituir, num movimento em que a posse está marcada pela efemeridade, pela volatilidade, diferentemente da “sociedade de produtores” em que o valor da posse dos objetos se expressava por sua solidez e durabilidade [Zygmunt Bauman: «Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadorias», 2008].
Na mesma linha de reflexão, Bocock, ao abordar a diferença entre o consumo no capitalismo moderno e no pós-moderno, salienta que o consumo, no final do século XX, transformou-se em um fenômeno social e cultural deixando de ser unicamente econômico. Ele está relacionado com aquilo que os indivíduos são ou desejariam ser, e também com os processos implicados na identidade [Robert Bocock: «El Consumo», 2003].
Trazemos essas abordagens sobre o consumo de hoje para incitar os leitores e leitoras a pensarem um pouco sobre o enredamento da infância nesta trama. Assim como o consumo é ressignificado a partir da segunda metade do século XX, o mesmo acontece com a infância e as crianças no interior desta nova lógica que configura a “sociedade dos consumidores” de que nos fala Bauman. Nela, “todo mundo precisa ser, deve ser e tem que ser um consumidor por vocação (ou seja, ver e tratar o consumo como vocação)”.
E quando o autor diz “todo mundo”, isso inclui particularmente as crianças, potenciais consumidoras, seja pelos recursos que mobilizam em vista da centralidade que ocupam nas famílias de hoje, pela influência que exercem sobre as escolhas de seus pais, ou porque as crianças consumidoras de hoje são os jovens e adultos consumidores de amanhã. Para que a formação das crianças ocorra em consonância com a cultura do novo capitalismo, onde as fronteiras entre consumo e política se confundem, um conjunto articulado de pedagogias culturais entra em ação.
Schor nos diz que a partir da metade do século XX, em especial nas décadas de 80 e 90, emergiu uma nova aliança – a aliança entre crianças e consumo. A produtividade das crianças para o consumo e para o mercado econômico começa a ganhar relevância e espaço por meio das campanhas publicitárias, onde o objetivo central é fazer destas crianças consumidoras [Juliet Schor: «Born to Buy. The commercialized child and the new consumer culture», 2004].
Neste artigo, pretendemos chamar a atenção para a publicidade, a partir de uma pesquisa que investiga peças publicitárias de revistas de grande tiragem, com circulação semanal, e o uso que nelas se faz de imagens de crianças. Constatou-se, em concordância com as análises de Schor, que quando a publicidade aciona crianças para vender determinado produto, vende-se não apenas o produto, mas uma representação de infância útil ao mercado.
E vende-se tanto a imagem física, o corpo destas crianças, quanto padrões de beleza e de conduta. Mercantiliza-se e molda-se uma infância própria aos interesses de mercado, tanto como estratégia para vender mercadorias como para vender e consumir as próprias crianças. Meninos e meninas ainda bem pequeninos já sobem nas passarelas da moda e suas fotos inundam campanhas publicitárias que apontam tendências e marcas. Seus corpos infantis são crescentemente erotizados e transformados em mercadorias que vendem e sugerem muito mais do que o desejo de adquirir simples produtos.
Pelos estudos que temos realizado, as imagens de crianças que encontramos em peças publicitárias indicam ser este mais um sintoma de uma sociedade que não faz exceções. Sugerem também, sob outro ângulo, que devemos ficar atentos à afirmação de que “o advento da instantaneidade conduz a cultura e a ética humanas a um território não mapeado e inexplorado” [Bauman: «Modernidade líquida», 2001].
É assustador pensar que na sociedade de consumidores nem mesmo as crianças pequenas escapam da volúpia do mercado.

Paula Deporte de Andrade

Rede Municipal de Educação de Venâncio Aires, Rio Grande do Sul

Marisa Vorraber Costa

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Luterana do Brasil


  
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Edição:

Edição N.º 188, série II
Primavera 2010

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