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Justiça global: uma questão política, antes de tudo o mais

É, hoje, comum ouvirmos falar de cidadania global, dando a entender que todos somos cidadãos do mundo e que esta questão ultrapassa, há muito, o estatuto legal da pertença a um Estado, com o consequente conjunto de direitos e deveres de cidadania.
Se a última afirmação é verdadeira, a primeira está longe de o ser. Há muita gente sem qualquer poder de participação, mesmo a nível local – desde logo, todos os que vivem abaixo de um determinado nível de bem-estar, quer vivam em países subdesenvolvidos quer vivam nas margens do mundo rico, onde o crescente aumento do desemprego veio pôr a nu fragilidades e situações de exclusão antes insuspeitadas.
Deveríamos, por isso, falar, em primeiro lugar, de justiça global. Difícil? Obviamente, porque os desafios a que nos enfrentamos estão para lá da retórica e da proclamação de princípios e de boas intenções. São desafios de ordem prática, exigem vontade, pragmatismo e acção concertadas, só possíveis se levarmos a sério a interdependência e a solidariedade, entre todas as pessoas e todos os povos, vivam na nossa rua ou num qualquer lugar do mundo. Isto implica que a política leve a sério o princípio da igualdade de oportunidades, pilar fundamental da equidade social, e sem o qual não poderemos falar de verdadeira democracia, de respeito pelos direitos humanos, de cidadania ou de desenvolvimento. As maiores dificuldades à justiça são o confronto de interesses, onde sempre ganha o mais forte, e o modo ultrajante como se divide a riqueza produzida – para uns poucos, tudo e cada vez mais, e, para a maioria, um lugar nas margens, no limite da sobrevivência.
Não será possível um compromisso universal sobre a Justiça que crie as possibilidades efectivas para o desenvolvimento, tendo em conta os valores da pessoa e da comunidade, incorporando o melhor das tradições liberal e comunitarista e, também, reconhecendo que os povos têm em si mesmos a capacidadede tomar nas mãos o próprio destino?
Tem de ser possível. Pois, não parece difícil, apesar de podermos ter diferentes perspectivas sobre a vida e o modo como desejamos e queremos vivê-la, que todos nos reconheçamos, reciprocamente, como seres humanos, como pessoas “livres e iguais, em dignidade e direitos” (Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 1º); e, igualmente, que todos nos reconheçamos como seres situados, num contexto e numa história, com diferentes valores culturais, sociais, religiosos, etc.
Este reconhecimento permitiria que todos se pudessem olhar nos olhos, sem laivos de sobranceria, estabelecendo relações simétricas e dando sentido e conteúdo às palavras justiça e desenvolvimento. Só no dia em que passarmos a ver no outro (indivíduo ou país) um igual, isto passará a ser possível. A nível individual, a questão é ética, cada um escolhe como quer e pode agir; mas ao nível dos países, a questão é política, é quem governa nas mais diferentes esferas do poder que escolhe como quer olhar para o mundo subdesenvolvido ou em desenvolvimento.

Maria Rosa Afonso

Professora


  
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Edição:

Edição N.º 188, série II
Primavera 2010

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