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Avaliação e dominação

Em textos anteriores, tive oportunidade afirmar que a escola pública portuguesa nunca mais seria a mesma após a investida legislativa protagonizada pelo XVII Governo Constitucional. E essa afirmação estava respaldada empiricamente no amplo movimento desencadeado pelos professores e que culminou nas duas maiores manifestações ocorridas após 1974. Por outro lado, todos os dias me chegavam notícias acerca do clima que se vinha “institucionalizando” no interior das escolas, em que uma das mais distintivas características era o medo – sentimento que há muito estava arredado das fronteiras da Escola. Como é evidente para todos, a razão para o clima de permanente tensão, conflitualidade e medo generalizados devia-se à tentativa de institucionalização de um sistema de avaliação do desempenho profissional, legitimado pelo Governo – e secundado pela maioria dos analistas e comentadores de serviço na Comunicação Social – através de uma argumentação eminentemente meritocrática. De acordo com esta perspectiva, tratava-se de colocar “ordem” num sistema injusto, que não premiava os melhores e permitia que todos atingissem, por inércia, o topo da carreira, independentemente das respectivas performances.
A atender seriamente neste tipo de argumentação, o escalonamento piramidal assim obtido permitiria recompensar os melhores professores, que teriam acesso ao topo da carreira, e penalizar os piores, que assim permaneceriam na sua base, apesar dessa situação poder ser alterada se revelassem interesse em melhorar profissionalmente, o que poderia ocorrer se se esforçassem seriamente nesse sentido. A falácia desta argumentação já há muito se encontra estabelecida e desocultada, desde logo por aquele a quem é atribuída a invenção da palavra meritocracia:
Michael Young, em «The Rise of Meritocracy» (1958). Mas basta olhar para uma pirâmide para se perceber que a sua forma (e respectivo conteúdo) nunca são alterados sem entrar em ruptura com o próprio conceito, isto é, transformando-a numa outra figura qualquer. Portanto, a falácia da argumentação meritocrática está aí: constrói-se uma pirâmide – o sistema de quotas define-lhe adequadamente a forma, pelo menos no topo – e afirma-se que todos podem ascender a esse topo se revelarem empenhamento, esforço e sofrimento.
Na opinião de Young, um sistema meritocrático não pode ser confundido com um outro que se designe por democrático.
Estes dois regimes são conceptual e empiricamente opostos. E esta confusão tem vindo a estabelecer-se com a difusão da ideia segundo a qual tudo estaria dependente da implementação de um correcto sistema de avaliação. Deste modo, envolvem-se eminentes “peritos” no campo, atribuindo-lhes a responsabilidade de legitimação científica – no respeito pelo pior que a modernidade nos ofereceu neste domínio das relações entre a Ciência e a sociedade – de uma prática que é eminentemente política e que, assim, está dependente dos princípios e valores hegemónicos numa determinada época. E a que vivemos diz-nos que esses princípios e valores são “pós-liberais”, isto é, orientados pelo individualismo mais radical, pela competição desenfreada, por um darwinismo social acentuado.
É por tudo isto que me parece preocupante a aceitação da introdução do princípio da avaliação do desempenho profissional como inquestionável, tratando-se agora de atenuar os piores dos seus previsíveis efeitos. Seja qual for o modelo a introduzir, do que se trata é de classificar e punir – numa palavra, dominar.
Assim, o problema torna-se irresolúvel e uma coisa está garantida: a democracia fica mais distante e o medo tem todo o espaço para se institucionalizar, transportando consigo todo um sistema de dominação que importa desde já questionar. Ora, uma sociedade onde o medo é rei não é uma sociedade boa para se viver.

Manuel António F. Silva


  
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Edição:

Edição N.º 188, série II
Primavera 2010

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