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“O novo regime reforça a centralização e contribui em larga medida para a erosão da colegialidade e da participação interna nos órgãos escolares”

Investigador e Professor Catedrático do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional da Universidade do Minho, Licínio Lima considera que o novo regime vem reforçar o poder do director sob a estrutura da avaliação escolar e afirma que, ao contrário do que pretende fazer crer, o Ministério da Educação não está preparado, do ponto de vista político e administrativo, para transferir mais competências para as escolas. “Creio que para isso não valeria a pena estar a alterar o 115/A de 1998”, diz Lima.

Um dos três objectivos referidos no preâmbulo aponta para a necessidade do “reforço da participação das famílias e comunidades” na direcção das escolas, indiciando um défice de participação comunitária. Concorda com esta ideia? 

É difícil analisar esta questão de uma forma simplista. Apesar de tudo, a investigação demonstra que, de facto, o índice de participação não é propriamente muito activo, quer por parte dos professores quer por parte da restante comunidade educativa, nomeadamente dos alunos, face aos quais essa participação é intermitente e genericamente passiva.
Não me parece, no entanto, que seja este novo regime a inverter a situação, porque no fundo ela deriva das características essenciais da administração escolar portuguesa, caracterizada por uma elevada centralização do ponto de vista político e administrativo. A direcção das escolas está, no essencial, fora das próprias escolas - aquilo que há muito designo por direcção atópica das escolas - está nos órgãos centrais e desconcentrados do Ministério da Educação. Neste sentido, seria contraditório esperar que houvesse elevados níveis de participação activa no contexto escolar.

O que traz então de novo este documento para fazer face ao referido défice de participação democrática? 

Aquilo que este diploma poderá eventualmente trazer de novo é um maior protagonismo no que toca à intervenção autárquica. Sou, desde há muitos anos, um defensor da representação das autarquias nos órgãos de gestão da escola. Se as autarquias levarem a sério esta competência - e ouço dizer que em alguns casos o fazem, embora noutros se fale já em agendas políticas na aproximação às escolas, em todo o caso legítimas, desde que se cumpram as regras - admito que haja momentos de maior participação e de intervenção, seja na eleição do director, seja na constituição do Conselho Geral.
Globalmente, porém, não vejo de que forma os actores escolares, e desde logo os actores da comunidade em geral, venham a ter uma participação muito mais activa do que até agora. Porque no essencial nada vai mudar. A política continua centralizada, a direcção mantém-se atópica, e o Conselho Geral, ao contrário do que afirma o documento, não é um órgão de direcção política estratégica.
Devo dizer, a esse propósito, que não sou particularmente contra a existência de um órgão de gestão unipessoal. Dada a actual cultura profissional e organizacional, porém, julgo que essa não será a melhor escolha. Mas se tivermos um director democraticamente eleito e amplamente subordinado a um órgão político forte dentro da escola, teremos um executivo, unipessoal ou não, subordinado politicamente ao órgão máximo democrático representativo da escola, que seria um órgão de direcção.

Isso conduz-nos a outro dos objectivos do diploma: favorecer a “constituição de lideranças fortes”. Uma avaliação externa das escolas realizada em 2006/2007, porém, concluía que 91 por cento tinha uma apreciação de “Muito Bom” e “Bom” no domínio da “organização e gestão escolar” e 83 por cento idêntica apreciação no capítulo da “liderança”. Até que ponto este diploma traz alguma luz nova a esta questão? 

Nenhuma investigação da qual tenha conhecimento, incluindo as próprias avaliações externas das escolas, permite traçar um diagnóstico que aponte para a existência de lideranças escolares fracas. Pelo contrário, costumo dizer que as escolas funcionam bastante bem, com lideranças bastante atentas e responsáveis, não obstante as intervenções do Ministério da Educação, através dos seus órgãos centrais e regionais. Acredito inclusivamente que caso essa intervenção estivesse menos presente e fosse menos asfixiante, eventualmente as escolas poderiam até funcionar melhor.
Não percebo, de resto, por que razão a alegada falta de liderança haveria de coincidir com uma liderança colegial. As lideranças colegiais, também o diz a investigação, têm constituído um elemento muito importante na gestão das escolas portuguesas. Nada permite concluir que uma liderança individual seja melhor ou pior do que uma liderança colegial.
O que habitualmente conduz a este tipo de conclusão são as perspectivas ideológicas ligadas à Nova Gestão Pública, aquilo que designamos por perspectivas gerencialistas, uma lógica individualista da gestão importada sobretudo das teorias gerencialistas e económicas, oriundas de certos ideários políticos. De resto, creio que em qualquer dos casos, ainda que o legislador queira garantir boas lideranças individuais nas escolas, isso seja difícil, ou mesmo impossível, por via jurídico-formal.

Que tipo de implicações pode este tipo de liderança trazer à vida democrática das escolas? 

Um dos problemas destas lideranças individuais num contexto fortemente centralizado é  que, previsivelmente, os directores irão dispor de maiores poderes e prerrogativas sobre o interior das escolas, mas sairão mais fragilizados no diálogo com o ME. Até aqui havia um órgão colegial, na figura do conselho executivo, que, apesar de tudo, era mais forte em termos de diálogo com as instâncias do ME, representando mais claramente a comunidade escolar.
Além disso, haveria, em princípio, menor propensão para tomar decisões erradas, porque quando quatro ou cinco pessoas trabalham em conjunto têm tendência para debater mais os problemas e diminuírem essa margem de erro. O director agora está sozinho, é um órgão unipessoal solitário. E quando ocorre um erro nas lideranças individuais ele tende a tomar maiores proporções. 

Outra das principais metas do novo regime é “reforçar a autonomia das escolas”. Ela sai de facto reforçada com a nova legislação? 

O decreto 75/2008 é  uma mera variação do 115-A/98. Em termos de autonomia não acrescenta coisa nenhuma, porque a escola portuguesa continua refém da figura dos contratos de autonomia - o mesmo é dizer que está completamente fora dela. Basta recordar que com o anterior regime se assinaram 22 contratos, à luz do 75/2008 não houve um único contrato a ser celebrado.
Neste capítulo, o artigo 58, referente à atribuição de competências, é  espantoso, porque é tão genericamente limitado e elementar em termos de atribuição de autonomia que a pergunta certa a fazer seria: mas como podem funcionar as escolas na ausência desta pequena transferência de competências?

O que está  aqui então verdadeiramente em causa? 

Creio, sem dúvida, que é o reforço da direcção individual, o reforço do poder do director sobre a estrutura da organização escolar. Nesse sentido, chamo a atenção para dois elementos muito importantes.
Em primeiro lugar, o director passa a nomear e a demitir livremente os responsáveis dos departamentos curriculares, de acordo com o seu próprio critério, o que representa uma mudança profunda em relação aos processos de democracia e de colegialidade das estruturas ligadas ao conselho pedagógico e às estruturas de representação e coordenação dos professores nos seus departamentos. Por outro lado, no caso das escolas agrupadas, poderá existir um coordenador de estabelecimento – mas que em caso algum será um representante desse estabelecimento junto do director e da escola sede; pelo contrário, será um representante do director do agrupamento junto ao seu próprio estabelecimento de ensino.
Em termos estruturais e morfológicos, as alterações do 75/2008 são reduzidas. Onde as alterações são de facto maiores é no discurso político-ideológico relativamente à abertura da escola ao meio, dando maior protagonismo às autarquias e aos actores comunitários. Mas a abertura da escola ao meio não depende apenas disso - e a investigação também assim o demonstra – mas sim de muitos outros factores e projectos. E de algo essencial, que é a maior abertura do ME à definição de políticas no interior das escolas. 

Que consequências poderão advir para aquilo que poderemos designar como a actual matriz da escola pública portuguesa? 

Em primeiro lugar, julgo que o Conselho Geral não trará mais poder e mais autonomia às escolas, e penso que rapidamente se chegará a essa conclusão. Por outro lado, o cargo de director pode ser muito poderoso internamente, mas muito débil e enfraquecido externamente. Ao contrário do que se afirma no decreto 75/2008, ele não será o rosto de cada escola, mas tenderá, isso sim, a ser o rosto do ME dentro de cada escola. A par disto temos ainda o Conselho das Escolas - caracterizado como um órgão consultivo do ministro da educação e como fórum de participação nas políticas educativas, mas que na verdade serve para clarificar orientações políticas relativamente às escolas.
Em resumo, considero que o novo regime reforça a centralização e contribui em larga medida para a erosão da colegialidade e da participação interna nos órgãos escolares, através de uma aposta numa gestão unipessoal, que reforça muito a figura do director. De substantivo, não se deverá contar com nada de novo relativamente à autonomia e democracia nas escolas, pelo contrário.

Uma mudança, portanto, que não vem alterar o substancial... 

Sim, porque não  é possível uma escola mais democrática, mais autónoma e mais participativa se a lei orgânica do ME continuar a mesma. Não há uma transferência significativa de competências relativamente às escolas, e desse ponto de vista o novo regime é uma desilusão e mera retórica. Objectivamente, o ME não está preparado, do ponto de vista político e administrativo, para transferir mais competências para as escolas. Creio que, nesse caso, não se justificaria alterar o 115-A de 1998.  

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa 


  
Ficha do Artigo

 
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Edição:

Edição N.º 186, série II
Outono 2009

Autoria:

Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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