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A História continua...

Diz o adágio que mais vale prevenir que remediar. Ora, há muito tempo que os portugueses não seguem este adágio. Não previram a morte da galinha dos ovos de oiro, que foi o fim do Império, nem se precaveram contra as consequências da perda da Índia, do Brasil e, por fim, das colónias de África.

Qualquer que seja a espécie de crise que mais acomete o indivíduo ou a sociedade, - designadamente moral, económica ou política – ela é sempre uma decorrência da alteração de um processo que se considera normal porque não dificultoso nem exigindo recomposição. Mas porque as crises podem ser inesperadas ou previsíveis, o bom senso aconselhará, como ensina o adágio, que para uma boa gestão dos activos mais vale prevenir que remediar.
Ora, há muito tempo que os portugueses não seguem o adágio. Como não faziam análises nem balanços, não previram a morte da galinha dos ovos de oiro, que foi o fim do Império, nem se precaveram contra as consequências da perda da Índia, do Brasil e, por fim, das colónias de África. Nos intervalos de depressão moral e económica, tornavam-se “nómadas do mundo (em) demanda de espaços abertos a uma afirmação tolhida no berço”, no dizer do emigrante Miguel Torga, já que “sempre no nosso horizonte de portugueses se perfilou como solução desesperada para obstáculos inexpugnáveis a fuga para céus mais propícios.” (no dizer do emigrante Eduardo Lourenço). Depois, quando “chegou a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constância o país habitável de todos, sem esperar de um eterno lá-fora ou lá-longe a solução que como no apólogo célebre está enterrada no nosso exíguo quintal” (ainda Lourenço), - viu-se que o ninho estava vazio: sem galinha e sem ovos, e para muitos pior do que isso, sem quintal. A conjunção de crises cíclicas acabaria por fazer dos portugueses queixosos-pessimistas compulsivos.
É um facto que todas as grandes crises (individuais ou colectivas, nacionais ou mundiais) geraram milhões de vulgares e anónimos pessimistas, mas também muitos de renome, cuja história pessoal se manifesta como um plasma da sua época. Lembremos, sem preocupações selectivas, alguns dos notáveis que permanecem na nossa memória mais útil:
Em Portugal, Antero de Quental, em 1871, amargurado por ver o seu país com “a indústria perdida, o comércio arruinado, a população diminuída, a agricultura decadente”- como que agrilhoado a “um destino subalterno e humilhante” e anestesiado com um ”espírito mortal de espectros a que dá uma vida emprestada o espírito do século XVI”.
Na França, Paul Valéry, em 1919, perante os escombros da Grande Guerra de 1914-18 e a fragilidade de uma civilização: “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais...”
Na Espanha, Miguel de Unamuno, em 1937, confrontado com o desencadeamento trágico da guerra nacional fratricida, metaforiza no mito de Fausto a entrega da alma ao Diabo e repõe o grito extremo de Fausto: “Restitui-me a minha alma!”
E André Malraux, em 1946, a seguir ao termo da Segunda Guerra Mundial, ante o resultado da grande tragédia, interroga-se: “O Homem morreu?”
Na Alemanha, Karl Jaspers, em 1949, faz-se eco da interrogação dos que indagam se o Caos não é uma inerência do Homem e do seu instinto desencadeado sem freio, hesitando: “É de meter medo...”
Um ano depois, o russo cristão Nicolas Berdiaev faz o balanço das soluções revolucionárias que prometiam realizar na Terra o reino substituto do Céu e conclui: “No fundo, nenhuma revolução conseguiu triunfar na história; as revoluções terão sido acontecimentos importantes provocados por necessidades internas e resultando de factos anteriores; terão sido mesmo um ponto de partida para destinos ulteriores; mas nenhuma delas resolveu as tarefas que almejava. E o mesmo sucederá no futuro.”
Antero de Figueiredo, quando fez o discurso sobre a decadência dos povos peninsulares, partia de duas soluções revolucionárias conseguidas contra o Passado: a Reforma e a Revolução Francesa. A próxima, aberta ao Futuro, seria o Socialismo. Dizia ele: “O Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo. A Revolução [socialista] não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno.”
Nessa altura, por “mundo moderno” entendia-se o “mundo futuro”, tendo como modelo uma Europa “pensante e industriosa”, avançada na Cultura, na Ciência e na Técnica. E era face a um paradigma de que estavam distanciados países da mesma Europa, como Portugal, que os espíritos pessimistas se mostravam descrentes e ao mesmo tempo esperançados na superação necessária para vencer atrasos e diferenças, que Antero, no caso português, atribuía a “raízes do passado (sentimentos, hábitos, preconceitos) e a erros históricos.”
Hoje, perante a grande crise económica e financeira que, tendo o epicentro nos Estados Unidos, abalou e ainda abala o mundo, como um terramoto ou uma epidemia, será difícil acreditar, como o optimista americano Francis Fukuyama, há vinte anos, que “o ponto final da História é a democracia liberal orientada pela economia de mercado.”
Mais fácil será admitir que já se perfila o próximo capítulo de uma longa História que continua, dentro e fora da Europa e da América, – só faltando saber se da melhor ou pior maneira, se com ou sem novas revoluções à vista...

Leonel Cosme


  
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Edição:

Edição N.º 185, série II
Verão 2009

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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