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Não se importe, não fica obrigado

Para os amigos que apresentaram os meus novos livros....e para os que ouviram a apresentação, essa, a minha família inventada....

É comovente, é difícil de entender, é voltar a ser criança, é uma festa que parece não ser merecida. É um presente. Esses embrulhos amados pelas crianças. Especialmente na época do Natal. Essa impaciência pela surpresa do que deve estar dentro dos pacotes/embrulhos ai. Impaciência que nem deixa dormir em paz. Impaciência do imaginário. O que será, o que há dentro do pacote? Uma carícia, um mimo, uma maré de seres humanos? Os mais novos sempre ficam à espera dessa noite de Natal, com ou sem consoada. Os mais velhos voltam a ser crianças a partir do momento que sabem, como eu, que deve haver uma festa, tudo por causa de livros. Ideias usadas apenas pelos que têm esse pensamento, por mim denominado doutoral e não pensamento do povo ou vulgar. Povo ou vulgar, por outras palavras, pensamento válido da mente cultural, outro conceito criado por mim, o que me dá direito de autor.
Quem deve aparecer, o que vão dizer? Parece-me que os livros são bons, têm sido muito trabalhados, muito pesquisados, muito provados. Dos dois que vão ser apresentados, há um que parece ser igual a um anterior, só por causa do título. Será que vão ler o conteúdo para reparar que é substancialmente diferente? A impaciência do adulto feito criança perante o segredo e o silêncio eterno dos que preparam a festa. E eu, como retribuo tanta amabilidade, tanto carinho manifestado pela minha pessoa? Será que os livros são presente suficiente para retribuir essa simpatia? Ou, o conteúdo é suficientemente válido para ir sempre em frente e assim pagar deslocações, leituras, corridas para aparecer a tempo e horas para o evento? Será que estou a devolver como devo tanto interesse e simpatia pela minha pessoa?
Calma, menino, calma. Dizem por ai que há o sentimento de dar e de devolver, sentimento que, em acção, é denominado reciprocidade e que obriga a devolver. Esse conceito organizado em 1924 pelo pai de Antropologia Francesa, um Marcel Mauss de feliz memória. Criou o conceito ao rever textos de outros em cento e vinte e quatro páginas, para o mudar tudo a seguir, nas dez páginas finais do texto. Texto que parecia fundamental para a vida social e que, sem dar por isso, acaba por ser, essa grande mentira social, o título de um dos meus livros. Mentira social, o presente, a realidade emotiva, o carinho da organização da festa e da presença das dezenas de embrulhos, metaforicamente falando, sentados no palco em duas mesas. Na primeira, os embrulhos da academia e das soberanias dos países aos quais pertenço, a seguir os embrulhos que falaram de mim com caloroso carinho, que, como criança crescida, fizeram-me chorar. Essas lágrimas que não caem, que ficam connosco, mas que não permitem falar. Cada embrulho aberto da segunda mesa, era uma surpresa, era um desejo inacreditável de estar sempre ali e nunca mais sair. Entre os meus, dentro da minha família, essa que foi criada por mim no país das maravilhas, que a nada obriga. Tenho dado muito, mas tenho recebido mais. Primeiro, as presenças, a seguir, as deslocações de diferentes lugares deste pequeno país muito distante, depois, as palavras, e, durante o tempo todo, a simpatia das palavras.
Senhores das prendas, não se importem, a nada ficam obrigados, porque a obrigação é apenas uma teoria que foge da realidade quotidiana. O quotidiano é neo ? liberal: cada um com os seus. Os embrulhos das mesas, com as suas famílias, nessa tarde amena, com as ideias do debate, no fim-de-semana, a prepararem a semana e tomar conta dos seus. A festa foi um presente, não uma obrigação para ninguém. Nem os mais surpreendidos pelas minhas ideias de ser o presente uma grande mentira social. Mentira social que, em criança, não sabemos nem pensamos, mas que em adultos, apenas sentimos um imenso agradecimento e um desejo ciumento de estar sempre com essa família por mim fabricada, em país estrangeiro. Senhores das mesas, senhores do auditório, senhores que tentaram e não puderam aparecer, embrulhos de Natal, não fiquem comprometidos, a nada estão obrigados. Marcel Mauss, em dez das duzentas e vinte e quatro páginas do seu estimado livro, estava enganado. Queria-se enganar para tornar mais leve a vida pesada. E, anos a fio, nos enganou. Felizmente, o engano foi descoberto, permite a emotividade agir como melhor entenda. Não se importem, não estão obrigados. A resiliência é que nos defende, convosco ao pé de mim.
Feliz Natal! Do não obrigado, mas agradecido como criança rebobinada da minha cronologia até a infância.

Raúl Iturra


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 184
Ano 17, Dezembro 2008

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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