Página  >  Edições  >  N.º 184  >  Foucault não ia à minha escola, mas mandava representantes

Foucault não ia à minha escola, mas mandava representantes

The Wall, clássico da banda de rock inglês Pink Floyd, é o que salta de meu museu de imagens. A cena que imortalizou o clichê mais outsider do cinema, onde crianças ateiam fogo a uma escola parece realizar-se, como profecia. Nunca quis atear fogo à escola, embora, vez ou outra, tramasse em segredo contra alguns professores, além de um punhado de diretores e inspetores.
Esse texto procura tratar de alguma de minhas lembranças escolares, a partir de postulações de Foucault presentes em "Vigiar e punir".
O ano é o longínquo 1977, eu acabara de chegar à primeira série primária. Agora, eu, de fato, iria começar a estudar ? me diziam. Entre as novidades pedagógicas daquele ano, estava a lista que a professora elaborava, ao longo do dia, com o nome daqueles alunos criadores de caso, bagunceiros, mal criados. Se, ao final do dia, o aluno permanecesse com o nome na lista, seria punido com deveres de casa extras e recados para os pais no caderno. No caso de se levar bilhete para casa, a coisa complicava, pois era quase certo que alguns tapas e puxões de orelha iriam fazer parte da reprimenda doméstica. O que determinava se um nome permaneceria até o final do dia na lista era o comportamento após ter sido incluído nela. Havia certo requinte na organização daquela lista. Se, depois de ser incluído nela, o aluno continuasse a fazer bagunça, seu nome era acrescido de uma cruz, isso tornava a absolvição mais complicada, pois primeiro ele precisaria livrar-se daquela cruz para, só então, limpar o nome da lista.
Foucault aponta o movimento de reorganização do ensino elementar de meados do séc. XVIII como um momento privilegiado para o desenvolvimento da vigilância hierárquica nas escolas. Para ajudar o mestre, Batencour escolhe, entre os melhores alunos, toda uma série de "oficiais", intendentes, observadores, monitores, repetidores, recitadores de orações, oficiais de escrita, recebedores de tinta, capelães e visitadores. Os papéis, assim definidos são de duas ordens: uns correspondem a tarefas materiais; outros são da ordem da fiscalização: "os 'observadores' devem anotar quem sai do banco, quem conversa, quem não tem o terço ou o livro de orações, quem se comporta mal na missa, quem comete alguma imodéstia, conversa ou grita na rua (...)"
Mais de dois séculos separavam a minha turma das escolas relatadas por Foucault, o que não me impediu de conhecer os tais "observadores" e seus congêneres.
Invariavelmente, a professora delegava funções muito semelhantes às descritas por Foucault aos melhores alunos, ou melhor, às meninas mais bem comportadas. Bastava que ela saísse da sala por algum motivo para que a escolhida exercesse o poder com toques de sadismo e perversidade. Era nessas ocasiões que havia o revide de todas as sacanagens de que eram alvo aquelas gurias. Puxões de cabelo, filas furadas na hora do recreio, boladas, mochilas escondidas, entre outras coisas, seriam vingadas naquela lista. Qualquer coisa era motivo para entrar na lista.
- Levantou para fazer ponta no lápis? Já botei seu nome na lista!
- Olhou para trás? Vou botar uma cruz no seu nome!
- Falou alguma coisa com o colega da frente? Mais uma cruz!
Por mais de uma vez, a lista foi entregue à professora com nomes tão cheios de cruzes que seriam necessárias algumas 'reencarnações' para limpar a barra daqueles coitados. Além da responsável oficial, sempre surgiam mais duas ou três que se autonomeavam para a função de "observadoras", o que inviabilizava a possibilidade das listas, já que, no final das contas, cada uma tinha a sua lista e, por conta disso, a turma toda acabava fazendo parte dela. Por fim, alguns alunos faziam uso da "ocasião" e incitavam as meninas umas contra as outras, de tal forma que elas eram incluídas nas listas de suas respectivas rivais. O resumo da ópera é que ninguém, nem mesmo a professora, conseguia entender ou dar razão a nenhuma delas e as listas por completo acabavam sendo dispensadas.
Para Foucault, a punição disciplinar é parte de um sistema que opera a partir do binômio gratificação/sanção. Tem-se aí a matriz para o processo de treinamento e correção: "a divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel: marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; mas também castigar e recompensar. A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale com recompensa ou punição."
Até que ponto essas histórias guardam relação com a lógica de Foucault em "Vigiar e punir" eu não sei, mas é certo que foram impactantes o suficiente para que eu as pudesse guardar até aqui.

1) Desenho de André Brown feito especialmente para este texto. André, além de desenhista, é mestre em educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e integrante do grupo de pesquisa "Linguagens desenhadas e educação".

Winston Sacramento


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 184
Ano 17, Dezembro 2008

Autoria:

Winston Sacramento
Mestre em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Integrante do grupo de Pesquisa "Linguagens desenhadas e educação"
Winston Sacramento
Mestre em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Integrante do grupo de Pesquisa "Linguagens desenhadas e educação"

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo