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Uma falsa questão?

Foi visível para todos. Nos primeiros dias de aula, chegou, nalguns pontos da cidade, a nova máquina para revolucionar o ensino português para os mais novos: um micro-computador pessoal.
Noutros pontos da mesma cidade não está ainda disponível o instrumento chamado desejo anunciado, mas deverá chegar. Poderíamos imaginar um novo Plano Nacional de Escrita associado ao Plano Nacional de Leitura, já em curso; uma espécie de acordar colectivo para a necessidade da divulgação da escrita, desde a tenra idade.
Basta pensar no artigo 13 da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, que declara que "a criança tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem considerações de fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa ou artística ou por qualquer outro meio à escolha da criança."
Pensamento ingénuo.
O Carlos, 7 anos, já é feliz possuidor da nova máquina. Passa a primeira noite em casa, conversando com o pai que lhe tenta explicar o que na escola não se explicou. Como arrancar, como desligar, que teclas fazem aparecer letras no ecrã, que teclas fazem acontecer outras coisas. Sendo encarregado de educação, o pai aproveita para configurar o browser filtrando "páginas não desejáveis". No dia seguinte, quando o pai arruma o novo instrumento de trabalho na mochila do Carlos, o filho, muito admirado por tal acto de insubordinação anuncia: "mas o professor proibiu-nos de levar o computador para a escola". Parece não ser a escola quem promoverá a comunicação.
Em outros pontos da cidade, computadores são retirados das salas de 1º ciclo do Leandro, da Marlene, do Wilson e da Carina. Testemunham, fechados numa sala, todos em fila, um ao lado do outro, cada um com a sua própria impressora ligada, imposições de poderes intermédios, em oposição com as orientações iniciais centrais. Por várias razões, crianças deixaram de ter acesso ao seu próprio blogue de turma. Aqui também não parece ser a escola a promotora da comunicação.
Entretanto, o Carlos pode levar, por mais uma vez, o computador para a escola, num dia previamente combinado. Não para trabalhar com ele, mas para outro senhor instalar uma coisa nova. Desde então, um filtro codificado impede quase por completo o acesso à Internet.
Outras crianças aguardam a utilização do computador colectivo porque o senhor que faz algumas coisas no computador é o único autorizado para actualizar o programa de protecção sem o qual a máquina não funciona. É comovente este paternalismo por parte de quem assessoria a escola.
O poder, habilmente guiado por grandes grupos económicos, está, desde a década de noventa, veiculado ao conceito de empregabilidade, associado a formação ao longo da vida. É pressionado para familiarizar os consumidores na utilização de meios informáticos ligados a redes de telecomunicações.
Na nossa sociedade documentada, a partilha do poder faz-se sobretudo através do confronto das ideias. Será que a vulgarização de máquinas que permitem não só a transcrição das ideias como a sua divulgação, provocou anseios entre os detentores do poder, nos diferentes degraus da hierarquia? Forçados em admitir pelo menos a hipótese de partilha do poder toleram mal a ideia. Entraram em defesa, consciente ou inconscientemente. Alguns, um pouco arrogantes, com propostas hilariantes para compor uma ode a alegria colectiva ao advento do computador pessoal para cada criança, desvirtuando o conceito de troca de ideias. Outros, pragmáticos, dificultando a utilização da máquina.
Será que tudo não passa de uma falsa questão? Os instrumentos que facilitam o direito das crianças inscrito no artigo 13 da Convenção sobre os Direitos da Criança existem desde muito antes do micro-computador. O excesso de paternalismo da autoridade que impede o exercício deste direito também.
Mais uma vez, com o instrumento agora disponibilizado, é do educador a opção de partilhar o poder e de promover comunidades de escrita.

Pascal Paulus


  
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Edição:

N.º 183
Ano 17, Novembro 2008

Autoria:

Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela
Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela

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