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A vida ao vivo e a cores

Uma vez por ano lá temos a oportunidade de regressar ao tema do Prémio Nobel. O Prémio Nobel é o que é, rodeado pelas mesmas disputas e controvérsias que existem em torno de todas as escolhas em que os concorrentes não correram numa pista lado a lado. Não obstante, é um facto que na área das ciências o prémio Nobel consegue assinalar algumas das descobertas científicas que mais impacto causaram.
A estranheza aparente de muitos dos trabalhos premiados, pelo menos aos olhos de quem está de fora, permite também ilustrar de forma excepcional as engrenagens subtis do progresso científico e dar voz a todos os que falam contra o perigo de investir exclusivamente numa ciência com retorno económico garantido. E se se tem destacado a idade avançada dos premiados, como se a juventude fosse um impedimento para aceder a tais prémios, a verdade é que só o olhar maduro e retrospectivo de algumas décadas permite pesar com rigor a importância da contribuição dada. Ou seja, não são os premiados que são velhos, são as descobertas que são antigas, e o comité Nobel que tem o bom senso de se pronunciar sobre trabalhos amadurecidos e que tiveram já oportunidade de espalhar a sua semente.
Vem tudo isto a propósito da atribuição no prémio Nobel da Química 2008, novamente a um trabalho na área da Biologia. Osamu Shimomuru, Martin Chalfie e Roger Tsien foram premiados pela descoberta da proteína verde fluorescente (mais conhecida por GFP ? green fluorescent protein). Trata-se de uma molécula que é produzida naturalmente pela medusa Aequorea victoria, comum na costa oeste norte-americana. Shimomuro, o pioneiro de um trabalho prolongado que começou ainda nos anos 60, foi o primeiro a descobrir a proteína que emite luz verde quando iluminada com luz ultra-violeta, tendo este grupo de cientistas posteriormente conseguido isolar e caracterizar o gene responsável. As aplicações desta descoberta foram de tal forma valorizadas que hoje em dia existe um verdadeiro arco-íris destas proteínas, cada uma delas produzida por ligeira alteração da estrutura da versão original. E assim, o espectro do arco-íris proteico fluorescente já vai do azul ao vermelho, com mais de duas dezenas de variantes poeticamente baptizadas de banana, tangerina, morango, cereja, safira ou esmeralda, para já não falar das versões foto-activáveis, ou que mudam de cor. Tudo isto para que a vida se possa ver ao vivo e a cores.
Recordo a propósito notícias de telejornal antigas que falavam animadamente da criação de pinheiros de Natal fluorescentes ou ratinhos verdes, no que mais parecia uma exibição de ficção científica de mau gosto. Sim, as artes actuais da manipulação genética permitem fazer tudo isto, mas não é evidentemente por esta razão que a proteína fluorescente verde é tão valorizada. Graças às suas propriedades, a GFP abriu a porta a um reino interdito na biologia: a visualização directa de proteínas e células em função em organismos vivos. Até à sua descoberta, era em geral necessário matar a célula ou o organismo em estudo para localizar os seus componentes, algo incompatível com a observação de processos dinâmicos. A utilização da proteína GFP como marcador, quer iluminando células inteiras, quer em fusão com proteínas celulares de forma a torná-las visíveis sem perda de função, veio abrir um novo mundo no estudo dos processos da vida. Por exemplo, é hoje possível seguir em tempo real a invasão de um organismo por um tumor, ver quais os órgão progressivamente afectados, e monitorizar a eficiência de medicamentos anti-tumorais, iluminando um modelo de laboratório com uma lâmpada ultravioleta. Ou ainda colorir diferentes neurónios do cérebro de forma a descortinar a rede de ligações que estabelecem entre si e como são afectadas pelos estímulos externos. Quem diria que tanto valor acrescentado estava escondido numa pequena medusa do pacífico ou que alguém tiraria um dia tanto proveito de passar umas horas a olhar para o mar?

Margarida Gama Carvalho


  
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Edição:

N.º 183
Ano 17, Novembro 2008

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

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