O Brasil tem assistido à emergência pública do vasto mapa dos quilombos (micro-sociedades, lugares, aldeias remanescentes de escravos fugidos até ao final do século XIX), alguns em processo de regulamentação da posse da terra, que se julgava serem poucos (e afinal já se conhecem mais de mil dos que continuam a existir), um dos temas que estão a dar origem à publicação de dezenas e dezenas de livros resultantes de pesquisas, manuais de divulgação, enciclopédias e dicionários da negritude, afro-brasileiridade e africanidade (p. ex., o álbum Mulheres negras do Brasil), ensaios e artigos, tudo para resgatar factos, memórias e imaginários, ao lançamento de obras para a infância e juventude e kits didácticos, à oferta de centenas, senão milhares, de acções e cursos de capacitação para professores das redes públicas de ensino. São os intelectuais negros, juntos com os desportistas, actores ou modelos da moda, garantindo maior equidade no tratamento, ganhando o ressarcimento, construindo a voz própria e saindo da obscuridade, com orgulho e distinção, num contraponto à imagem pública do negro pobre, pouco escolarizado e criminoso.
ASSOCIAÇÃO E CONGRESSO
Pensamento negro e anti-racismo, diferenciações e percursos foi o tema do V Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as (COPENE), evento com periodicidade bienal, realizado em Goiânia, capital do Estado de Goiás, próxima de Brasília, e que contou com 1.200 participantes. Foi organizado, no final de Julho, começo de Agosto, com o suporte habitual da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), que engloba os investigadores, profissionais, professores e intelectuais que se reconhecem como negros e, geralmente, trabalham em áreas relacionadas com temáticas afro-brasileiras, negras em geral, do anti-racismo e similares (ver www.museu.ufg.br/vcopene). Essa associação congrega esforços para a criação de laços de solidariedade, lutando por melhores condições de pesquisa e divulgação de resultados (novos meios e facilidades financeiras) e um reconhecimento mais efectivo tanto dos seus direitos quanto das contribuições para os saberes específicos no âmbito nacional e internacional. O Congresso beneficiou do patrocínio do Governo federal, do Governo do Estado de Goiás e do Pontão de Cultura/República do Cerrado (Goiás), entre outras entidades, e teve a presença de investigadores, professores, intelectuais, escritores e mesmo integrantes das comunidades e cultos afro-brasileiros, sendo de destacar, entre tantos outros, Carlos Moore (da Jamaica, ex-colaborador de Cheik Anta Diop, que vive na Bahia e que lançou os livros Racismo & sociedade e A África que incomoda), Kabenguele Munanga (docente congolês naturalizado brasileiro, da USP) e Cuti (escritor), que abordaram temas desde as relações de política e economia entre o Brasil e África, passando pelo racismo na sociedade brasileira e no mundo, pela própria identidade de ser negro e também pesquisador, até às literaturas africanas de língua portuguesa e de outras línguas. A ABPN e o COPENE têm o respaldo do órgão governamental de apoio à pesquisa (CAPES) e do Ministério da Educação e de duas outras instituições do Governo Lula (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/SEPPIR e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres/SEPM), mais intimamente relacionados com a sua política de promoção da igualdade racial, de combate às discriminações e de equidade social. Desta vez, a organização coube às Universidades Federal, Estadual e Católica de Goiás, sob a batuta de Alex Ratts. O Congresso marcou uma mudança de orientação, visto que, pela primeira vez, apresentaram-se ao acto eleitoral para a direcção da ABPN duas listas de candidatos, tendo ganho a "chapa" (como dizem os brasileiros) de Eliane Cavalleiro (da Universidade de Brasília), a qual é acompanhada por, entre outros, Alex Ratts (da Univ. Federal de Goiás, o único que transita da direcção anterior), Carlos Benedito (da Universidade Federal do Maranhão), Maria Nilza da Silva (da Univ. Estadual de Londrina, Paraná) e Rosane Borges (também da UEL), Denise Botelho (da Univ. de Brasília) e Amauri Pereira (da Universidade Estadual da Zona Oeste do Rio de Janeiro), que apresentaram propostas, entre outras, de captação de novos investigadores, de efectivação do Portal da Associação, de intervenção junto às agências científicas e de fomento, bem como de outras agências governamentais e organismos internacionais, do fortalecimento da parceria com os NEAB's (Núcleos de Estudos Afro-brasileiros existentes em universidades brasileiras) e com a CADARA (uma comissão consultiva do governo federal para as questões dos negros, integrada por professores, intelectuais e líderes negros), de articulação com as representações regionais da própria ABPN (cujos coordenadores regionais foram eleitos no decorrer do Congresso) e de efetivação de publicações há muito requeridas, mas sem sair do papel.
O APOIO DO GOVERNO LULA
Em geral, um evento desta natureza não é aberto aos pesquisadores não-negros, embora o regulamento preveja convites que podem ser considerados especiais. Com inequívoca presença de universitários negros que são, ou foram, militantes do Movimento Negro Brasileiro, e alguns outros intelectuais, escritores e mesmo mães-de-santo ? pessoas cujo percurso de estudo e de luta é conhecido ?, congregou também estudantes de várias regiões e universidades do país (incluindo alguns africanos frequentando estudos pós-graduados no país), ligados a actividades académicas no âmbito de acções de pesquisa (teórica ou de campo), de consciencialização da sociedade ou de luta anti-racial (por exemplo, o colectivo ENEGRECER, da UERJ). Uma parte desses estudantes enquadra-se nos programas oficiais de Acções Afirmativas, de Apoio à Pesquisa e Extensão à Comunidade previstos na já célebre Lei 10.639/2003 e legislação afim, que estão relacionados com o estudo obrigatório da História e Cultura Africanas e Afro-brasileiras em todos os níveis de ensino e também com o apoio à permanência (não desistência, quando há falta de condições pecuniárias ou de auto-estima) dos estudantes negros no ensino superior (programas UNIAFRO e AFROATITUDE) e às publicações dos centros. Note-se que mais de 70 universidades públicas do Brasil já puseram em prática o regime de quotas para negros, índios e outros estudantes (pobres). Este Congresso acaba constituindo, bienalmente, um encontro que, para além de um interessante, notório e festejado acréscimo de auto-estima, efectua o balanço dos trabalhos em curso (iniciação à pesquisa, mestrados, doutoramentos, pós-doutoramentos, inquérito social, publicações científicas, culturais, políticas públicas, etc.) e do estado da "questão negra" no Brasil por interventores que são, ou foram, sujeitos e objectos, autores e destinatários das pesquisas, concluindo-se que saem desse escol alguns quadros que influenciam ou orientam as políticas públicas nessa área e outros que são alguns dos responsáveis máximos de Ministérios e Secretarias e demais entidades do Governo Lula.
HOMENS E "MULHERES-GUERREIRAS"
Os pesquisadores negros incluem-se obviamente na elite sócio-profissional que pensa o Brasil enquanto nação e sociedade em mutação vertiginosa. Duas realidades recentes que mostram essa mudança: os pretos e os mestiços de negro e branco (ditos "pardos", na classificação do IBGE) já são mais de metade dos brasileiros; igual percentagem da população beneficiária da melhoria do nível de vida já pertence à classe média, ainda que uma fatia importante seja da classe média baixa. Porém, os negros não possuem as mesmas condições económicas, familiares, sociais e culturais dos brancos. O desnível é grande e as mulheres negras, tantas vezes vivendo com os filhos, são, de resto, as que experimentam maiores dificuldades na carreira de investigadoras. Por isso, quando associam a pesquisa à militância, ao papel de mães e chefes-de-família (às vezes, incluindo a parental, "alargada"), à liderança e à ascensão social e hierárquica, são consideradas, segundo uma expressão corrente, "mulheres-guerreiras", e isso é como que uma distinção nobiliárquica entre os negros conscientes, que veneram a sua garra. No Brasil, todavia, ainda não são reconhecidas de modo aceitável, nacionalmente, por não terem projecção considerável, certas figuras negras que nada ficam a dever às qualidades de outras brancas, de âmbitos similares. No cânone literário, por exemplo, o Brasil privilegia Castro Alves como o poeta do anti-esclavagismo (Alberto Costa e Silva dedicou-lhe recentemente um livro), quando existe o poeta Luiz Gama, negro, activista, que ajudou a libertar escravos em São Paulo, mas não goza de tanta fama nem prestígio, sendo curiosamente filho da líder negra Luiza Mahin, engajada em revoltas na Bahia. No pensamento brasileiro, é ver outro exemplo, ainda não se reconhece a real estatura intelectual, cultural e política de Abdias do Nascimento (pensador, activista durante seis ou sete décadas, senador, actor, director teatral, pintor, professor nos EUA, que completou 92 anos de idade), cuja contribuição para se compreender o país é tão importante como as de Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Antonio Candido ou Darcy Ribeiro, e isto falando de referências para a compreensão do Brasil que se tornaram universais.
O PRAGMATISMO NEGRO
Entretanto, observa-se que os órgãos tradicionais de fomento da pesquisa universitária (CAPES e CNPq) continuam com alguma insensibilidade, de certo modo, aos problemas específicos dos investigadores, professores e estudantes-investigadores negros, porque se regem por critérios ditos "apolíticos", "objectivos", "neutros" e "científicos" de apoio a projectos de pesquisa e concessão de bolsas, mas que, numa sociedade como a brasileira, de profundíssimas desigualdades sociais e de sedimentação racista, a igualdade de oportunidades não só não é efectiva como reforça a dominação branca na pirâmide social e na organização do saber e do conhecimento. Os investigadores negros, temperados nas lutas e nas dificuldades de ascensão social, inserem o seu trabalho na luta social pela mudança do Brasil, pois atravessam ainda uma fase histórica de "negritude", se atentarmos no estado das relações sócio-culturais. É natural, portanto, que, por vezes, alguns professores universitários expressem, por incrível que pareça (indício psicanalítico ainda de insatisfação com a realidade?), algum ressentimento em relação à TEORIA e capacitem as suas próprias performances (por exemplo, o uso de vestes afro-brasileiras em certos ritos académicos) como actos culturais ou epifanias em-si e por-si, sem necessidade de explicações/discussões da prática e da teoria. Como se qualquer acto, por exemplo, de violência política (atentado à bomba no Iraque) não precisasse de discursos explicativos e de investigações e debates para uso social e histórico, esquecendo-se, além disso, que falar é agir. Associada a esta pontual denegação da TEORIA, surge frequentemente o discurso anti-eurocêntrico, o que se compreende e aceita, e mesmo um discurso anti-razão ocidental, o que também se compreenderá à luz da crítica pós-colonial, pós-industrial, pós-moderna e anti-globalização liberal provinda de um Sul diferente, negro, feminino, índio, excluído, pobre, emergente, que fala por si e pelos seus. Fica-se com a sensação, aqui e ali, de que essa crítica, que vem instaurando um novo paradigma brasileiro, agora com o apoio determinante do Governo Lula, não deixa de deslizar para o fetiche da "África-mãe" idealizada (em que se nota, tantas vezes, que essa África é uma espécie de ficção ou de mitologia para usos inapropriados ou improcedentes), para o apagamento das raízes portuguesas (seria interessante, p. ex., estudar a onomástica dos sujeitos-pesquisadores, a esmagadora maioria com nomes bem portugueses), para a menorização ideológica ou acrítica da moderna racionalidade ocidental (embora, obviamente, se assimilem e citem Marx, Weber, Benjamin, Adorno, Arendt, Foucault, Bourdieu, Boaventura Sousa Santos, muito referido), e, por isso, os emblemas intelectuais e as bandeiras políticas sejam outros.
ALGUNS ÍCONES NEGROS
Ora o Congresso decorreu sob a égide de 18 representantes significativos do "pensamento negro" e da acção pública, com direito a fotos nos cartazes, todos eles já falecidos: Audre Lorde (poetisa negra norte-americana, feminista e lésbica), Du Bois (pai do pan-africanismo), Antonio Maceo (activista da independência cubana), Guerreiro Ramos (sociólogo brasileiro dos anos 50-60), Clóvis Moura (pesquisador da cultura afro-brasileira e do racismo), Zora N. Hurston (escritora norte-americana), Beatriz Nascimento (professora e activista brasileira), Lélia Gonzalez (professora brasileira), Marcus Garvey (político norte-americano), Milton Santos (geógrafo brasileiro), Aimé Césaire (pai martinicano da Negritude francófona, recentemente falecido), James Baldwin (escritor norte-americano), Mãe Aninha (mãe-de-santo brasileira), Carolina de Jesus (escritora autodidacta brasileira), Cheik Anta Diop (historiador e filósofo senegalês), Frantz Fanon (psiquiatra e revolucionário martinicano na Argélia), Malcolm X (líder muçulmano norte-americano) e Laudelina de C. Mello (activista brasileira que fundou o primeiro sindicato das empregadas domésticas). Em 2010, o congresso irá realizar-se no Rio de Janeiro, organizado por uma equipa inter-universidades liderada por Maria Alice Rezende Gonçalves (da UERJ), que enfrentará, junto com a ABPN, a tarefa de aprofundar o debate teórico, de apoiar o alargamento dos campos de pesquisa, de contribuir para dar voz à juventude que investiga e de preparar um futuro (pós-negritudinista?) sem exageros corporativos, jogos de lobbies académicos ou influências regionais-estaduais, engrenando em novas cooperações nacionais e internacionais, lançando publicações democráticas e acessíveis, enfim, agindo pelo colectivo para além do debate e do organicismo. Os investigadores e docentes, o Movimento Negro Brasileiro, os intelectuais, escritores e artistas reconhecem que é fundamental criar uma base científica de apoio, para que a sociedade reconheça, com objectividade, o valor dos negros, os valores negros, aqueles que vão além do politicamente correcto, desde o samba ao candomblé, e do tantas vezes ainda politicamente incorrecto das telenovelas e do futebol, e que a sua estrutura possa permanecer, solidificada, para lá do Governo Lula. Nota final: é evidente que se poderia discutir a questão de muitos negros serem, para nós portugueses, simplesmente mestiços ou, antes, mulatos, como dizemos e os militantes negros brasileiros não admitem (por discordarem do termo, efectivamente marcado por uma origem pejorativa). Comparar essa questão da mestiçagem brasileira, que é profunda e popularmente aceite, com a não aceitação da mestiçagem norte-americana (agora que Obama pode vir a ser o novo presidente dos EUA), seria fecundo e interessante, mas constituiria outro esforço e solicitaria muito espaço. Pretendi somente destacar o esforço da comunidade científica negra e "parda" do Brasil para o debate interno, o qual, em alguns pontos, me parece pouco aberto a repensar alguns adquiridos como definitivos, embora se compreenda tal posição à luz de um combate que sempre teve armas desiguais (leia-se espaços, meios e oportunidades).
Pires Laranjeira
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