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Meu filho me ensinou

Boaventura de Souza Santos, em sua Teoria das Ausências, nos fala que há coisas que existem apesar de invisíveis aos nossos olhos. O fato de não as percebermos não nega sua existência. Tais coisas, segundo ele, são invisíveis porque fogem à lógica, digamos, convencional do sistema ou, mesmo, à lógica do observador. Ele fala da necessidade de abrir espaço para os saberes oriundos de outras lógicas como a dos camponeses, indígenas, operários, que envolvem inclusive uma maneira diferente de compreender e fazer uso do tempo, o que ele chama de ecologia dos saberes. Eu li isso num de seus livros, mas quem de fato me fez entender isso foi meu filho de dezessete anos.
Numa manhã eu o acordei para que se dedicasse aos estudos, uma vez que este é ano de vestibular para ele. Eu o matriculei no mais conceituado colégio de minha cidade, para cursar uma turma especial com professores cujo currículo é invejável. Assim, minha esperança é que tudo isso o prepare da melhor forma para encarar o vestibular e que ele ingresse numa universidade federal. Então, para mim, é óbvia a necessidade de que ele mantenha um horário de estudos regulares diariamente.
Num determinado dia, após o meu discurso matinal de valorização do estudo, deixei-o em seu quarto, estudando. Após meia hora, de absoluto silêncio e suposto estudo, ouço o som do Legião Urbana. Chego de mansinho, olho pela porta do quarto e vejo o "moleque" sentado na cadeira de frente para o computador, a tela aberta em links com questões das provas dos últimos vestibulares, o caderno no colo (onde ele "supostamente" parecia estar resolvendo alguma questão), livros e apostilas espalhados por cima de sua cama e ele ainda cantarolando um trecho da música, fazendo um dueto com Renato Russo. Estava tão absorto, que não percebeu que eu o observava.
Pensei comigo mesma: "Que danado! Ele está me enganando, fingindo estudar". Resolvi não dizer nada, só observar o "ladino". Após longos trinta minutos, vendo-o escrever no caderno, olhar a tela, abrir hipertextos, procurar algo nas apostilas, mudar de faixa de música, continuar cantarolando e ainda conversar com alguém no MSN, não me contendo mais, falei indignada: "Menino, eu mandei você estudar e você está aí de brincadeira? " Ele me olhou com a cara mais calma do mundo e retrucou: "E eu estou estudando." Repliquei: " Estudando? Como, nessa mais perfeita balbúrdia? " Ele retrucou: "Pergunte qualquer coisa do assunto, que eu respondo". Não resisti à possibilidade de provar minha tese de mãe. Vi que o assunto era história, que beleza! Tasquei perguntas que requereriam respostas elaboradas e críticas. E não é que o rapazinho deu um show em cada uma delas!
Quando me dei por satisfeita, após a sabatina, o danado retrucou: "Mãe, você achou que eu não estava estudando, é? Mas é assim que eu estudo. Não tenho 'saco' pra fazer uma coisa só. Não consigo me concentrar, fico entediado. Esse é o jeito que eu consigo me concentrar e estudar mais." Eu retruquei: "Mas como você consegue se concentrar em tantas coisas ao mesmo tempo?" Ele argumentou: "É que, no seu tempo, a lógica era fazer uma coisa de cada vez; no meu, é tudo junto. A gente faz mil coisas em um minuto. É tudo em tempo real. "
Aí entendi Boaventura em sua Teoria das Ausências. Só porque uma coisa foge da minha lógica, da forma como vejo e processo o mundo, não quer dizer que não exista. Muitas outras lógicas convivem com a lógica que eu uso para compreender o mundo. É necessário diálogo, respeito e tempo para entender a lógica do outro como uma das formas possíveis e válidas de agir e buscar soluções para os problemas. Há muitas lógicas convivendo num mesmo tempo, de acordo com o contexto cultural ou de cada "tribo", como diriam os mais jovens; há uma lógica distinta, tão válida e eficaz para outros como a minha o é para o meu mundo, minha geração e minha cultura.
Eu, mãe, professora, também sou aluna de um adolescente de 17 anos, que tem me ensinado muito sobre várias maneiras e possibilidades de ver e agir sobre o mundo. Com ele aprendo todos os dias sobre uma verdade que os sábios egípcios já diziam há milhares de anos: "Todos ao nosso redor são nossos mestres". A ecologia dos saberes pode começar nos lugares mais inesperados, a partir de uma escuta atenta de nossa parte para com o outro. Este outro pode ser nosso filho, nosso aluno de 4 ou 5 anos, um adolescente rebelde, aquele jovem rastafári, um operário, aquele adulto marcado pela vida e fracasso escolar que volta a procurar a escola, trazendo uma experiência de vida riquíssima e bela, aquele camponês analfabeto e tantos outros, que encontramos pela vida e que podem se tornar nossos mestres, se tivermos a humildade e sagacidade de reconhecer que o conhecimento está em todo lugar e que nós aprendemos com a diversidade e heterogeneidade de saberes e fazeres das pessoas.

Sandra Neri Brito de Freitas


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

Sandra Neri Brito de Freitas
Professora da rede pública. Participante do GRUPALFA - ?Alfabetização dos alunos das classes populares?. Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro.
Sandra Neri Brito de Freitas
Professora da rede pública. Participante do GRUPALFA - ?Alfabetização dos alunos das classes populares?. Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro.

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