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O pão suado mata a fome

Dar e receber: o segredo de viver

José Francisco está há dois anos em Natal, Brasil. Tem 50 anos e três filhos: o mais velho será policial já no próximo ano, como ele diz, "se Deus Nosso Senhor deixar". A do meio entrará nos estudos de Medicina Veterinária no próximo ano. O "caçula" está no colégio com o auxílio do "doutor", o vereador que tem ajudado José Francisco desde que aí chegou.
Na escola primária José Francisco não vingou porque não tinha interesse no conteúdo e na forma escolar. Trabalhou muito na agricultura no interior. Hoje, aos 50 anos, sabe que é vital o sucesso escolar para vencer na sociedade brasileira. Por isso procura fazer tudo com rigor para que os outros o reconheçam como trabalhador metódico, disciplinado e empenhado. Tem sido essa a sua arma de combate: a entrega. Em parte, tem sido esse dom de dar, como diria Marcel Mauss, que lhe tem aumentado o haver económico e social, capital de que se orgulha ter para viver.
Quando chegou a Natal dormiu primeiro muita noite no chão. Mais tarde, conseguiu um emprego como guarda de um condomínio, onde veio a semear ainda mais e a colher o respectivo fruto. Tem uma casa alugada próximo da praia e tem cama de casal, fogão, televisão, etc. e, como refere, "sem gastar um tostão" nesses bens. Todos os condóminos respeitam o seu modo de trabalhar e, de alguma forma, procuram retribuir com um olá, um sorriso, ou, de quando em quando, com outras dádivas materiais que muito têm ajudado a família.
Conheci este "Senhor", senhor da palavra, senhor da amizade e da interacção humana, vendendo cocos na praia. Em troca de um real, colhi uma lição de vida fenomenal. Mal paguei recebi, Um "muito obrigado. Que Deus lhe pague, volte sempre a Natal".
Sentei-me no areal de brancura imensa, soprada por um vento que varria as irregularidades e transformava a praia quase num manto de neve bem natalício. Ele olhou para mim e disse: "sabe, eu vendo a um real; se você for ali, será um real e meio. Se for lá acima, será mesmo dois reais. Mas eu não penso só para hoje não. Eu penso em ter cliente também amanhã". Do meu lado, a comunicação passara já a ser quase simplesmente gestual. Bebia daquela água de coco, maravilhosa, e o simples olhar que centrava no senhor José Francisco era suficiente para ele me continuar a ensinar. Para me continuar a contar a sua história de vida, o seu passado, o seu presente e o seu futuro que "se Deus quiser" será promissor.
Depois descreveu o modo como negoceia o coco, que lhe fica a 40 centavos, que, logo, "ainda" ganha 60 em cada um. E que vende a cerveja mais barata, que há pessoas que vendem muito mais cara. Que na concorrência da praia, onde passam dezenas de vendedores ambulantes, com Cds de música, milho assado, coco, pinturas, artesanato diverso, chapéus, bonés, queijo grelhado, etc. ele tem de encontrar uma forma de vencer e vender. E como? Sendo amigo, simpático, grato e vendendo mais barato.
Vem para a praia pelas 10 horas. Regressa a casa pelas 15. Dorme um pouco. Depois fica toda a noite de guarda no condomínio que lhe garante um ordenado de 800 reais. Contudo, um ordenado insuficiente para a economia doméstica. Os filhos precisam de comer e de estudar. Há a luz, a água para pagar, etc.. Por isso recorre à venda ambulante na praia. "Sem esta ajuda não era possível não. Mas?, vou-lhe contar aquilo que eu digo aos meus filhos? Há muito tipo de pão: um sabe mal, outro não. Aquele que eu quero comer tem de resultar do meu trabalho. Então eu digo em casa: minha gente, este pão mata a fome. Mata a fome porque é suado, o outro não".
Autêntica lição de economia em toda a sua extensão conceptual. Aula de economia social e de relações humanas que recebi quando visitei pela primeira vez a praia de Natal com o Professor Gaston Pineau, um amigo da Universidade de Tours, França.
Vidas vividas e (re)vividas num tempo de discussão de "Histórias de Vida e Formação" no III CIPA - Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica, Natal, Brasil.
De novo, a vida que nos ensina. De novo a aprendizagem para além da escola. De novo a educação em cada momento vivido mesmo para além dos espaços formais da lógica escolar. É caso para perguntar, de novo, "E agora Professor?"

Aeroporto de Natal, 19 de Setembro de 2008

P.S. Haverá mesmo "Não lugares" Mr. Marc Augé?

Ricardo Vieira


  
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

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