Tive oportunidade de assistir em Beijing à abertura e a algumas competições dos chamados Jogos Paralímpicos. Os meus comentários são inumeráveis mas gostava de regressar a uma conversa que tive com um amigo meu antes de partir. Em síntese ele perguntava-me o que é que uma competição que se passa só entre pessoas com deficiência (e destas só com algumas deficiências dado que as pessoas com deficiência auditiva ou intelectual não participam) tem a ver com o movimento da Inclusão. Sabemos que a Inclusão valoriza a convivência e o trabalho entre pessoas com capacidades muito diferentes com a convicção que, se forem usadas estratégias que permitam atender em grupo as necessidades de cada um, os resultados serão melhores. Daí a pergunta astuta e pertinente: que têm os Jogos Paralímpicos a ver com a Inclusão. Vamos ver:
1. Antes de mais as pessoas com condições de deficiência (PCD) são rejeitadas para efectuar práticas desportivas (sejam elas de rendimento ou de simples manutenção) em estruturas "regulares" (digo "regulares" entre aspas porque uma estrutura que assim segrega as PCD parece-me muito mais "irregular"). A não existir este movimento Paralímpico é muito provável que as PCD ficassem simplesmente impossibilitadas da prática desportiva. O movimento Paralímpico pode assim ser considerado na sua génese uma reacção à exclusão que as estruturas desportivas, activa ou passivamente, fazem às PCD.
2. Os Jogos Paralímpicos celebram a diferença e valorizam o desempenho de pessoas que em condições adversas conseguem desempenhos espantosos. Desafiava os meus leitores a se informarem qual é a marca que uma pessoa amputada do membro inferior salta em altura. Trata-se aqui não de valorizar só a performance humana (um corpo como uma magnífica máquina) mas de valorizar o que é possível fazer face a uma circunstância. Assim, o desporto Paralímpico abre novas perspectivas sobre as possibilidades humanas. Talvez antes desta organização existir não soubéssemos que se pode nadar sem braços ou sem pernas ou mesmo sem uns e outros.
3. As PCD têm aqui uma forma de mostrar até onde podem ir, de se testarem e de mostrar o resultado deste seu esforço aos outros. É uma afirmação da sua diferença e sobretudo uma afirmação positiva, enviando a mensagem que o querer e o trabalho podem fazer coisas maravilhosas mesmo face a circunstância adversas.
4. Sabemos que menos de 1% das estruturas desportivas portuguesas acolhem atletas com condições de deficiência. É provável que no seguimento deste tipo de eventos mais e mais se mostrem receptivas a criar estruturas de inclusão. Tenho testemunhado um interessante movimento de academias privadas que procuram técnicos, adaptações e formação para acolherem este novo mercado. No fim de contas o que se passa no meio desportivo não é muito diferente daquilo que assistimos no passado recente ao nível educativo: uma fase segregativa que lentamente se foi abrindo à diferença. Claro que no Desporto existem condicionalismos que podem constituir ainda maiores barreiras à Inclusão: por exemplo o culto da técnica a perfeição padronizada e a glorificação dos "perfeitos" vencedores poderá atrasar mais este processo de inclusão na área desportiva.
Mas que fique claro: não foram as PCD que se colocaram "à parte": elas foram colocadas à parte e quando se organizaram para poderem ter acesso à prática desportiva e à competição, assim mesmo nos dão exemplos de abertura e de solidariedade. Prática desportiva não segregada? Sim, vamos a ela, mas não esqueçamos que vai implicar um novo conceito de desporto. Um desporto que se assuma diverso como a humanidade, que recupere os valores lúdicos e que se desenvolva mais numa linha horizontal do que numa hierárquica pirâmide. Os Jogos Paralímpicos são assim uma celebração da diferença e são uma prova cabal que o termo "deficiente" ("não eficiente") sempre foi um disparate e um anacronismo. Bem-vinda pois a mediatização dos Jogos para abrir as bocas e os corações. (E sabem que pessoas sem braços comem, na China, o seu arroz com os pauzinhos manuseados pelos pés?)
David Rodrigues
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