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As Pátrias não morrem

O primeiro número de um novo periódico temático denominado Nova Águia, que se apresenta como uma "Revista de Cultura para o Século XXI", é consagrado à "Ideia de Pátria - Sua Actualidade". E logo no seu Manifesto explicita o desígnio: um projecto tendente a mobilizar os cidadãos portugueses e lusófonos para um amplo debate em prol do renascimento de Portugal, da comunidade lusófona e do homem para uma vida mais livre, consciente, solidária, plena e total, na esteira de anteriores movimentos culturais representados pela revista A Águia, o grupo da Renascença Portuguesa e o pensamento de grandes poetas e pensadores do nosso destino nacional e universal como Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, entre outros.
E para que nenhuma dúvida ficasse: não rejeitamos que os mitos e professias acerca de um destino grandioso de Portugal e da comunidade lusófona, sintetizados na ideia de contribuirmos para o Quinto Império como metáfora da consciência e da fraternidade universal, são um indicador da nossa vocação e possibilidade mais profundas, que todavia só se realizarão se, em conjunto com o melhor de todos os povos e culturas, nos auto-elegermos para as cumprir.
Sete dezenas de colaboradores, em que se incluem nomes cimeiros da cultura portuguesa, fazem o conteúdo deste primeiro número, com mais de centena e meia de páginas, em sintonia com o motivo que anima o grupo empreendedor: Tal como no início do século XX, sente-se que Portugal atravessa no presente uma profunda crise, a todos os níveis, com tudo o que a palavra implica de risco e oportunidade simultâneos. Agudiza-se hoje de novo, como escreveu Raul Proença num dos manifestos da "Renascença Portuguesa", uma 'atmosfera'composta de 'um sentimento de mal-estar' e de um desejo de alguma coisa indefinida, que nos incite, que nos impressione, que nos una, que nos salve".
Cem anos decorridos desde a crise que sepultou a monarquia constitucional, já não se poderia falar numa ressurgência das compreensíveis preocupações dela decorrentes que ainda afectavam, com algum sebastianismo à mistura, as esperanças da elite nortenha no advento da República e com Portugal curado do pessimismo recidivente que ainda amargurava, em 1896, Guerra Junqueiro, na sua "Párria", face a um País sujeito a "dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogo nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."
Vivia-se, então, um período de esperança que a jovem República fazia renascer no espírito da Nação ainda abalada pelo vexame do Ultimato inglês, em 1890; pelo fracasso da tentativa revolucionária do Porto, em 1891; pela crise económica e financeira de que o País não se recompusera findo o ouro do Brasil; pela ineficácia herdada da rotatividade dos partidos Regenerador e Progressista; pelo estado depressivo das forças morais e produtivas da Nação "em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai" ? ainda no dizer de Guerra Junqueiro.
Afrontando o pessimismo junqueiriano, A Águia "refundadora" de Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra foi-se actualizando em "voos" diferenciados nas quatro séries que duraram até 1930, todavia sem se distanciar completamente das "alturas" do seu genesíaco "habitat", que tinha ainda como paisagem etérea "saudosista e criacionista" os "sinais" de Ourique, a "missão" das Cruzadas e a "vocação" do Império. A perda do Brasil, o cerco anglo-germânico às colónias africanas, o envolvimento de Portugal na guerra de 14-18, na Europa e em África, para que fosse reconhecida, entre os aliados beligerantes, a sua dignidade histórica - como parceiro europeu e colonial - posta em causa, em 1885, na Conferência de Berlim, levaram algumas "águias" a alernarem os voos das alturas parnasianas com voos razantes sobre o terrunho. Assim nasceu a Seara Nova na pátria realista de António Sérgio, Jaime Cortesão, Raul Proença, Aquilino Ribeiro e outros, para responder aos novos desafios que se perfilavam ao viés de uma história de destinos transcendentais.
"Repensar Portugal" (título escolhido por Victor de Sá para um importante ensaio de 1977 sobre o fim do Império) já era, para os Seareiros, o reconhecimento de que o trato da economia também formatava a consciência social e que o destino de Portugal estava dependente, não de visões paracléticas, mas da reformulação da agricultura e da pesca, do desenvolvimento da indústria, da abertura de estradas entre a aldeia e a cidade, da transformação dos 60 por cento de camponeses e 20 por cento de operários em cidadãos de corpo inteiro, com pleno acesso à escola e à participação, como classe distinta da dos senhores e dos servos, no debate dos problemas nacionais, pelo direito que lhes advinha, finalmente, da consciência de serem parte de uma Pátria que era a sua por nascença, uso e herança.
Pois é esta a mesma consciência histórica de um "facto" perene e imutável feito da conquista de um "chão" e de um sentido de "pertença" que levou Afonso Henriques, após a batalha de Ourique, a proclamar o nascimento de um país chamado Portugal e que hoje não merece discussão, senão por exercício de retórica mais ou menos imaginativa. O que se pode, e vale a pena discutir, no pressuposto de que as condições materiais formatam a consciência social, são os motivos que levaram e continuam a levar portugueses a fugir da pátria, a alugá-la, a vendê-la ou a trespassá-la ? e pior do que isso, a negligenciar ou dispor do seu "bocado" como se o "todo" lhes pertencesse ou lhes fosse indiferente.
Mas as pátrias não renascem, porque não morrem. Muda-se a paisagem, muda-se o clima, mudam-se as pessoas, umas por doenças de desamor, descrença ou desilusão, outras pela escolha de diferentes caminhos, todavia sem perderem a memória do ponto de partida para, se chegados ao limite da última fronteira, retomarem o caminho de regresso ao chão e ideia que lhes moldou o ser, ou a "ipseidade", como diria o franco-magrebino Jacques Derrida, reflectindo sobre as "perturbações da identidade"e as "próteses de origem.".
Foi assim com os caminheiros lembrados de todos os tempos, foi assim com os esquecidos e os ignorados. Caminheiros todos, uns edificaram a Pátria, outros continuam-na. Mas nem os melhores serão eternos. Para que aos velhos tempos sucedam novos tempos, às velhas ideias novas ideias e a História continue como sempre foi: uma soma de perturbações e próteses.

Leonel Cosme


  
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Edição:

N.º 181
Ano 17, Agosto/Setembro 2008

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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