Enquanto se tece uma teia absurda no requinte e no exagero da sua estrutura, a que a voracidade da inteligência e do trabalho prometem a representação disforme de uma realidade sobre que não há controlo, consumimo-nos num ritual obsceno, enredados e cativos, de autofagia e saciedade de poder. Lançando pregões de justiça e de progresso, propalando sucessos perante a ignorância sem que as interrogações minguem, impiedosas e inquietantes, regando com miragens feéricas e com a alucinação das proezas a aridez do solo em que não vingam os gestos fraternos nem a simplicidade de uma harmonia ferida pela lâmina da excentricidade, vamos sendo empurrados para uma terra-de-ninguém em que nos falta a lucidez, a dignidade se enrosca sem agarrar o seu sentido e sobeja essa reacção alérgica com a roupagem das fúrias e das ofensas. Em contraponto com a cultura da diversidade assenta arraiais a guarda avançada de uma cultura da proibição, elevando o estandarte da paz e da segurança. Regras, normas, leis, preceitos, instruções, formulários, tratados, declarações, organogramas, códigos, conselhos, advertências, protocolos, boletins, cartões, registos, proclamações, estatutos, certificados, certidões, doutrinas, senhas, contratos, bilhetes, procurações, cotações, requerimentos, planos, acordos, regimentos, recibos, facturas, sentenças, assentos, autorizações, impedimentos, restrições, alvarás, concessões, documentos, provas, acusações, multas, números, autenticações, constituições, quotas, benefícios, chaves, adopções, protestos, princípios, direitos, obrigações, fronteiras, equivalências, sinais, horários, serviços, processos e nomeações em uníssono elevam o clamor que só uma interdição ousa afrontar, subliminar, mansa, matreira, sufocante do bafo fresco que insiste em aplacar as iras, os magmas profundos da carne: a interdição do prazer. O prazer exige ousadia perante cada receio inscrito na identidade a desnudar, o prazer ignora o modelo mental regulado pela norma colectiva, e quando o instrumento dos prazeres dá por si na condição de matriz das rotinas ou é vício ou adivinha a linha ténue em que se começa a definir a felicidade. Libertos das culpas confessas, assinamos um compromisso com a liberdade de copo nos lábios, escancarando uma gargalhada de diversão no ambiente solene de um velório ou na audiência selecta de um discurso, dormindo ao relento na areia com vários cartões de crédito no bornal, desbocados e mordazes no relance de um espelho da nossa imagem, sôfregos de céu ou mar, derramando beijos e sémen na volúpia das sedas e no suor dos perfumes, subscrevemos essa aliança com a felicidade e a plenitude da consciência embriagada no colo do tempo, com a promessa de mais se o tempo chegar. Com a devida proporção, na nossa penitência de formigas não abdicamos da folia que tantas cigarras cobiçam. Para tanto basta a arte de cantar à revelia da sorte, como se a malícia das caricaturas que coleccionamos no intervalo do trabalho valha tanto como as obras-primas que decoram os camarins das prima-donas sem talento. O peso da normatividade na estrutura dos entes sociais, que tende a autonomizar-se na sua complexidade, sendo conforme uma realidade já de si complexa é necessariamente espontâneo. Entretanto, a condição subjectiva da pessoa humana sustenta o equilíbrio perante esse formalismo obsessivo e dissimulado, dissolvido no tecido social como substância incolor num fluido saturado. São os valores nobres da vida, os laços que cada indivíduo estabelece ou desfaz em consciência com a sua sensibilidade, as suas emoções e a sua interpretação do destino, a noção da imprevisibilidade e de uma fenomenologia autocrática, de quanto sendo universal também á transitório, são estas constantes sobre que se não impõe a possibilidade de controlo que permitem à hidra exaurir-se na sua substância inútil. A pessoa humana realiza-se na sua missão temporária como agente sobre uma história, inscrevendo na página maior que retrata quanto nela não cabe, mas que tem a validade esboroada nos mitos, nas conjecturas e nos legados nebulosos sobre que se não ordena ou dominam as honras que lhes bebem na exuberância cerimoniosa do poder. E basta que se recusem os trocos do tédio que sustentam o papel de figurantes, e se imponha à custa das regras, sem que se maculem as regras, a condição de actores sãos. Seja pela imaginação, pelo saber, pela habilidade, pelo instinto ou pela convicção, se os homens tomam como sua a oportunidade deste milagre belo e fugaz da vida num recôndito universo, que qualquer sonho é suposto ser incapaz de atingir ou reproduzir, que maquiavelismo será suficiente para subtrair esse néctar à realidade. Se for pela arte do devaneio e com a força da perseverança, que seja, desde que haja a prudência em que as palavras valham mais do que os inquisidores podem dar por elas e os esbirros sejam perdoados pelas asneiras de figurantes.
Luís Miguel Brandão Vendeirinho
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