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Professores devem assumir o papel de "novos agentes da esperança"

Nascido em Toronto, no Canadá, em 1948, Peter McLaren é considerado por muitos autores não só como o mais conceituado professor de ciências sociais da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), mas também como o mais polémico. Naturalizado americano em 2000, é actualmente Professor de Educação na Graduate School of Education & Information Studies da UCLA.
É autor, co-autor e editor de aproximadamente quarenta livros e monografias. Mais de uma centena de artigos, entrevistas, críticas e colunas literárias suas foram publicados em dezenas de jornais e revistas especializadas desde a publicação da sua primeira obra, "Cries from the Corridor", em 1980. Quatro dos seus livros venceram o American Education Studies Association Critics Choice Awards pela sua qualidade na área da literatura educativa.
Tem sido conferencista convidado em inúmeras universidades norte-americanas, latino-americanas e europeias, onde aborda de uma perspectiva transdisciplinar quatro áreas pelas quais ficou conhecido internacionalmente: a pedagogia crítica, a educação multicultural, a etnografia crítica e a teoria crítica. Os seus trabalhos estão traduzidos em espanhol, português, catalão, chinês, coreano, japonês, finlandês, alemão, polaco, hebraico e francês. Peter McLaren foi o primeiro laureado do Prémio Paulo Freire para a Justiça Social, atribuído pela Chapman University, em 2002. Foi também alvo de um doutoramento honorário pela Universidade da Lapónia, na Finlândia, em 2004. Em 2005, um grupo de docentes e activistas do norte do México fundaram a Fundación McLaren de Pedagogia Critica com o intuito de divulgar o conhecimento do seu trabalho neste país e promover projectos na área da pedagogia crítica e educação popular. Em 2006, a Universidade Bolivariana da Venezuela inaugurou a Cátedra Peter McLaren.
Admirador confesso de Fidel Castro e de Hugo Chávez, sendo próximo do líder venezuelano, esta condição coloca-o numa posição frágil no seu país, onde é considerado um professor radical e subversivo. A tal ponto que, em 2006, McLaren apareceu à cabeça de um controverso projecto intitulado "The Dirty Thirty", uma listagem dos trinta professores politicamente mais radicais (leia-se "perigosos") da UCLA. A sua página pessoal pode ser visitada em www.gseis.ucla.edu/faculty/pages/mclaren/
Recentemente, McLaren esteve presente no Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho como orador na conferência "Pedagogia Crítica como Prática Revolucionária" e no lançamento do livro "Pedagogia Crítica contra o Império", publicado pelas Edições Pedago, escrito em co-autoria com a sua colega Nathalia Jaramillo. Aproveitando a ocasião, a PÁGINA entrevistou este controverso - e simpático - professor americano.

Assumia-se como marxista nos anos 70, período após o qual se associou a uma abordagem pós-estruturalista e pós-modernista. Mais recentemente, voltou a assumir-se como marxista. Podemos chamar-lhe um retrocesso?

Não concordo que seja um retrocesso. O terror que representa o capitalismo, a exploração do trabalho humano e as novas formas de exploração que atingem a quase escravidão a que assistimos hoje são mais prevalecentes do que alguma vez foram. A partir do momento em que estas condições de desigualdade, de sofrimento humano e de carência nas mais variadas áreas permanecerem o socialismo e o marxismo assumem todo o sentido. Penso até que a análise marxista fará hoje mais sentido do que alguma vez no passado.
Historicamente, as universidades e os círculos teóricos académicos americanos quase desde sempre colocaram a ênfase no estudo das relações culturais, das políticas de representação e das políticas da diferença, isto é, procuraram explicar de que forma as diferenças e as identidades foram historicamente reproduzidas. E esses aspectos são muito importantes. No entanto, o meu interesse reside em procurar saber de que forma foi produzida a semelhança nessas relações.
Nos últimos anos, o socialismo tem sido desacreditado e apontado como uma experiência falhada. Mas temos de perguntar-nos porquê. Será porque o marxismo e a análise marxista estavam erradas? O socialismo não é um artefacto histórico imutável. Ele vive, respira, é um processo, é uma ferramenta de análise e também uma forma de vida. E personifica, na minha opinião, uma história muito nobre, razão pela qual penso que deve ser defendido.
O pós-modernismo e o pós-estruturalismo construíram uma crítica ao marxismo julgando-o como ultrapassado e economicamente reducionista. Mas os teóricos a eles associados criticavam o marxismo da II Internacional, certas formas de marxismo que eram populares nos anos 50 e princípio dos anos 60, negligenciando o contínuo desenvolvimento da teoria do socialismo marxista. Julgo que, actualmente, estamos a assistir a um retorno à crítica marxista, que oferece agora poderosos argumentos contra a visão pós-modernista, que reescreveu as relações sociais materiais como meras relações culturais, de forma a torná-las mais compatíveis com as formas de existência capitalistas.
Qualquer que seja a nossa abordagem no sentido da construção de uma nova sociedade, ela terá de ser concebida numa perspectiva multifacetada e cuja centralidade estratégica seja a luta de classes. Precisamos de uma luta anti-racista, anti-sexista, anti-imperialista, pró-igualitária, pró-socialista. Não podemos centrar-nos numa única forma de resistência, temos de trabalhar todas estas áreas simultaneamente.
A contribuição pessoal do meu trabalho tem sido no sentido de demonstrar de que forma as relações capitalistas de exploração criam as condições de estas formas de antagonismo social se reproduzirem a si próprias, como estão funcionalmente integradas com esta lógica e porque razão devemos trabalhar para ultrapassá-las.

Nesse sentido, de que forma pode a teorização crítica marxista constituir um instrumento para explicar as desigualdades sociais e apontar caminhos que conduzam a uma maior justiça social?

O meu interesse pela análise das relações de classe numa perspectiva crítica do materialismo histórico do capitalismo é uma abordagem pouco comum para um professor universitário norte-americano, porque no meio académico do meu país não há uma grande tradição de análise marxista. Muitos dos meus colegas disseram-me, por isso, que o meu trabalho iria ser ignorado, visto como ultrapassado e que eu iria ser encarado um pouco como um dinossauro. Precisamente porque estava a abandonar a teorização pós-moderna que tornou tanta gente conhecida hoje em dia. No entanto, não foi esse o caso. Penso que existe hoje mais interesse pelo meu trabalho do que alguma vez aconteceu. Em primeiro lugar na América Latina, sobretudo na Venezuela e na Colômbia. E, claro, em países europeus, como Portugal ou a Finlândia - de onde acabo de regressar.
Na minha opinião, a análise humanista marxista é um instrumento fundamental para ajudar a desvelar as contradições centrais que guiam as sociedades capitalistas, nomeadamente a contradição entre o trabalho e o capital, e as relações internas que coexistem nestas sociedades, que ajudam a produzir e a reproduzir a sociedade capitalista. Ajuda-nos a perceber que as condições sob as quais os indivíduos tomam decisões e fazem escolhas não são produzidas por eles próprios, isto é, a relação dialéctica entre a subjectividade humana e as relações sociais de produção, como nos reproduzimos a nós mesmos nas relações económicas que utilizamos e tornamos possível essa reprodução.
Após a queda da União Soviética e dos estados policiais do Bloco de Leste criou-se a ideia de que tínhamos atingido o fim da História, que o capitalismo tinha ganho e que vivíamos no melhor dos mundos possíveis. A minha opinião é bastante diferente. Eu vejo o capitalismo e a maneira como ele evoluiu de uma forma que Sheldon Wollen designa por totalitarismo invertido. Por outras palavras, como a coberto da democracia se desenvolvem formas de totalitarismo e militarismo, numa espécie de fascismo suave que consegue singrar e reproduzir-se a si próprio. Um fascismo que se consegue sustentar a si mesmo através da mobilização do consentimento - uma expressão utilizada por Noam Chomsky ?, em particular através dos meios de comunicação social.

Podemos dizer que estamos na presença de um neo-marxismo? Ou de uma releitura da teoria marxista?

Eu tenho uma abordagem diferente. Algumas pessoas chamam-lhe neo-marxismo, outras pós-marxismo. A minha opinião é que um marxismo pós-Marx, por outras palavras, o marxismo que me interessa é o marxismo que foi escrito por Marx. Marx afirmou ele próprio que não era marxista. A minha intenção é não voltar às interpretações de Marx mas reler os escritos de Marx e interpretá-los à luz da realidade histórica actual. E penso que as ideias de Marx são ainda hoje as mais valiosas formas de análise que permitem perceber as contradições entre o trabalho e o capital na nossa sociedade. Elas não respondem a todas as questões, mas a tradição marxista é muita rica e auto-crítica.

Aprender com os erros do passado

Podem as mudanças políticas que tiveram lugar nos últimos anos na América Latina serem explicadas à luz desta releitura de Marx?

Sim, penso que podem ser explicadas nessa perspectiva. O que um marxista humanista como eu próprio se pergunta muito frequentemente é porque razão tantas revoluções acabaram por seguir pelo caminho errado; porque razão tantas revoluções bem intencionadas, no sentido de trazerem liberdade, justiça social e igualdade económica, acabaram por se tornar máquinas autoritárias e totalitárias. Um marxismo humanista questionar-se-ia, neste sentido, sobre o que aconteceu, por exemplo, na União Soviética e na Europa de Leste.
Na minha opinião, a União Soviética foi sobretudo uma forma de capitalismo de Estado. Negava o capitalismo, mas fracassou em negar a sua negação do capitalismo. Se o tivesse feito, ter-se-ia afastado do terreno das relações sociais capitalistas e caminhado possivelmente na via do socialismo ou do comunismo de que Marx falava. Mas há uma série de razões históricas para que isso não tenha acontecido e que daria, por si só, uma longa entrevista...
Uma coisa, no entanto, é muito clara ? e isto foi afirmado por pensadores e por revolucionários como Che Guevara: que em qualquer revolução comunista ou socialista é preciso mais do que apenas a mudança dos meios de produção e das relações sociais de produção, focando-se no desenvolvimento humano e na reflexão auto-crítica.

Considera que os líderes latino americanos que estão a tentar prosseguir a via do socialismo no continente se preocupam com essa dimensão?

Estão a tentar fazê-lo?

E aprenderam com os erros que há pouco referia?

Eu tenho uma grande admiração pela revolução Bolivariana e pelo presidente Hugo Chávez, que considero ser um dos mais importantes e influentes líderes do nosso tempo. Sou também um grande admirador de Fidel Castro. O que eles conseguiram foi tremendo. Claro que alguns erros foram cometidos e continuarão a ser cometidos. No caso da Venezuela, Chávez está a tentar criar as condições que possibilitem uma via para o socialismo. Mas o socialismo não está actualmente em prática na Venezuela, nem nada que se pareça. Chávez sabe que não se pode implementar a via socialista apenas num país, exigindo a cooperação de outros países latino americanos como o Equador, o Brasil ou a Bolívia. Mas o caminho está a ser traçado, nomeadamente através de organizações não governamentais que se dedicam, entre outras tarefas, a fomentar a democracia participativa no país e a dar apoio às missões criadas por Chávez no sentido de, por exemplo, erradicar o analfabetismo ? o que praticamente já foi conseguido. Ou seja, existe uma tentativa muito nobre e decidida de Chávez para criar as condições que permitam implementar o socialismo. Ao mesmo tempo existe uma forte oposição a Chávez - obviamente financiada pelos Estados Unidos -, não sendo claro o rumo que as coisas irão tomar. Apesar disso, ele é esmagadoramente apoiado pelos pobres.

Qual é o papel que a educação está a desempenhar nesse processo?

Eu diria que um papel decisivo. Mas não o suficiente para levar a cabo a revolução. Considero interessante, nesse sentido, o trabalho que eu e a minha colega Natalia Jaramillo temos desenvolvido na Colômbia, particularmente em Medellin, onde tivemos oportunidade já por diversas vezes de visitar escolas, participar em debates e de trabalhar com os sindicatos de professores. Numa dessas escolas, um estabelecimento de ensino secundário público chamado La Independencia, com cerca de mil alunos, alguns professores haviam sido assassinados pelos paramilitares.

Ao que julgo saber, os professores que assumem o papel de sindicalistas são um dos principais alvos dos paramilitares na Colômbia?

Sim, mas não só. Os sindicalistas são frequentemente alvo de assassinato ? penso que em média são mortos dois sindicalistas a cada semana. Os paramilitares trabalham em estreita colaboração com o exército, são uma espécie de braço armado civil dos militares. Matam prostitutas, sindicalistas e todos aqueles que são considerados indesejáveis ou suspeitos de colaborar com as FARC e outros grupos de guerrilha. Os professores colombianos são, nesse aspecto, os mais corajosos que já tive oportunidade de conhecer. Enfrentam habitualmente a morte, assassinados muitas vezes em frente aos próprios alunos por assumirem políticas educativas progressistas ou defenderem uma pedagogia crítica. Neste sentido, é interessante ver os contrastes entre um país militarmente repressivo, fascista, que põe em prática uma forte agenda neoliberal, como a Colômbia, e outro como a Venezuela que, em sentido contrário, está a tentar pôr em prática uma revolução socialista para o século XXI.

Os professores como "novos agentes da esperança"

Que tipo de trabalho desenvolve nas escolas que visita?

Os professores convidam-me para participar como conferencista porque conhecem o meu trabalho na área da pedagogia crítica. E não penso que aprendam algo de novo a partir de mim, julgo que é sobretudo pelo facto de me verem como um aliado do seu trabalho. Diria até que aprendo mais com eles do que eles comigo, inspirando-me, por exemplo, no trabalho pedagógico que eles desenvolvem no sentido de ajudar os seus alunos a criar defesas para o genocídio que ocorre à sua volta. Retorno frequentemente da Venezuela acreditando que o mundo pode possivelmente mudar para melhor?

Mais concretamente, que tipo de política educativa está a ser posta em prática na Venezuela no sentido de favorecer a transformação social que se pretende alcançar?

Eu diria que o principal educador na Venezuela são as comunidades autóctones locais. A educação popular de base tem feito parte da história da Venezuela ao longo da sua história, sendo ela que em grande medida toma em mãos a tarefa de mobilizar as pessoas na gestão das suas comunidades e do próprio país.
Mas Chávez é, também ele, um poderoso educador. E demonstra essa faceta no seu programa de televisão chamado "Alô Presidente". Eu costumo dizer que os meios de comunicação social representam uma forma de pedagogia perpétua, estando continuamente a ensinar-nos algo de novo. Muitas vezes mais pelo que não nos diz do que pelo que nos diz? Nos Estados Unidos nunca ouvimos uma ideia socialista na televisão. Não seria credível para o público americano. E ali está Chávez, ao longo de quatro ou cinco horas, falando de uma forma muito informal e familiar para o povo venezuelano sobre socialismo, sobre o seu pensamento, explanando as suas ideias de forma que as pessoas tenham uma percepção mais clara do que significa realmente o socialismo?

Não será esse exercício um pouco totalitário?

Quando fui falar à Universidade Central, em Caracas, um estabelecimento de ensino habitualmente conotado com as classes dominantes, quis falar aos estudantes no papel de membro da "oposição" acerca de pedagogia crítica. E os estudantes quiseram saber se eu era ou não apoiante de Chávez, e o que eu pensava acerca dele. Quando lhes disse que era pró-chavista eles ficaram muito zangados. Ouvi mesmo dizer que numa parede onde estavam afixadas uma série de fotografias retratando professores convidados da universidade a minha tinha sido retirada? É um debate contínuo: o que é conhecimento e o que é propaganda? O que é um debate aberto de ideias?

Mas esse debate tem lugar na Venezuela?

Estou certo que sim. Ele depende, acima de tudo, dos professores. Professores que, certamente, oferecem aos seus alunos perspectivas educativas críticas que seguem a corrente e outras que defendem a alternativa bolivariana. Mas a pedagogia crítica nunca é verdadeiramente neutral. Quando numa sala de aula o professor discorda de um aluno, lhe diz que as suas ideias são erradas e que deveria pensar de determinado modo, então está a silenciá-lo. E não ter voz é não ter poder. É uma má prática pedagógica. A arte da pedagogia crítica está em criar um espaço onde cada um possa manifestar a sua opinião e desafiar a do interlocutor sem a silenciar, mesmo que os argumentos sejam muito diferentes dos seus.
Nas minhas aulas, por exemplo, tenho muitos estudantes de esquerda que considero pouco incisivos na sua argumentação, limitam-se a ter opiniões. Mas eu digo-lhes sempre que há uma grande diferença entre ter uma opinião e construir uma argumentação sólida. Muitos deles pensam que apenas o facto de se assumirem como socialistas isso basta. Ao mesmo tempo, tenho também alunos que embora defendam ideias ao centro ou à direita conseguem fundamentá-las solidamente. Embora discorde com as suas posições, apercebo-me que são aplicados, que leram bastante, que conseguem construir uma boa argumentação teórica e lutam pelas suas ideias. Esta dialéctica é positiva na medida em que, ao reflectir sobre as suas ideias, elas tornar-me-ão mais forte na defesa dos meus próprios argumentos.

De que forma podem os professores tornar-se os "novos agentes da esperança", para utilizar uma designação sua?

Eu não estou optimista acerca do futuro, mas tenho esperança. A diferença entre o optimismo e a esperança é que o primeiro não se conjuga com luta, a esperança sim. A luta é um aspecto constitutivo da esperança. Nós lutamos por uma oportunidade de construir um mundo melhor e alguns de nós têm uma visão utópica abstracta do mundo que poucas ou nenhumas semelhanças tem com o mundo confuso das relações sociais em que vivemos. Para mim, a esperança está estreitamente relacionada com aquilo que designo por uma utopia concreta, com lutas reais que ocorrem um pouco por todo o mundo, nomeadamente pela garantia do acesso público a bens básicos universais, como a água.

Mas como podem os professores no seu quotidiano serem agentes dessa esperança?

Eles têm necessariamente de sê-lo, porque têm de se envolver naquilo que se passa no mundo. Na minha universidade sou visto como um extremista. Todos os meus colegas são bons liberais, acreditam na justiça social. A maior parte dos professores que leccionam em escolas de educação acreditam habitualmente nesses valores. Querem um mundo menos racista, sem sexismo, onde as pessoas tenham acesso universal aos bens básicos. São todas boas pessoas nesse sentido.
Mas ao mesmo tempo vivem uma espécie de amnésia social, uma grande recusa em interiorizar a relação entre os privilégios de que usufruímos nos Estados Unidos e o sofrimento de milhões de pessoas por esse mundo fora, que está na base de boa parte do nosso modo de vida, do nosso consumo exacerbado. Esquece-se facilmente como as grandes corporações, os nossos exércitos da noite, as nossas guerras imperialistas saquearam os recursos de outros países.
Há uma grande recusa em olhar para a nossa história de sangue, fundada em violência, de extermínio dos povos indígenas, de conflito com as classes trabalhadoras, de privilégios para as classes dominantes à custa dos desfavorecidos nas escolas e nas universidades. E esta é uma perspectiva que precisamos de interiorizar se queremos ser cidadãos críticos. A pedagogia crítica procura precisamente criar as bases para a emergência de cidadãos críticos, que confrontam essa História de uma forma realista e honesta de forma a mudar o rumo do país, fazendo dos Estados Unidos um agente global para a paz e prosperidade por oposição ao seu papel de anjo da morte.

Caça às bruxas regressa em força aos Estados Unidos

Tendo em conta que os partidos políticos e o próprio sistema político cai crescentemente em descrédito, que papel podem ter os movimentos sociais numa nova ordem política?

Eu penso que os movimentos sociais desempenham um papel muito importante. Em Los Angeles, por exemplo, o movimento de defesa dos direitos dos imigrantes é actualmente um dos mais influentes dos Estados Unidos. Porque ao abordar os direitos dos imigrantes questiona-se ao mesmo tempo uma série de outras questões, como a raça, a classe, o género, a luta de classes, os direitos humanos, os direitos económicos, etc.
No entanto, muitos destes movimentos sociais são, ao mesmo tempo, bastante limitados porque não oferecem uma crítica suficientemente assaz do capitalismo neoliberal, aceitando-o frequentemente como uma inevitabilidade e, nessa lógica, recusando pensar em alternativas pós-capitalistas ou em alternativas socialistas.

Como podem estes movimentos ? de entre os quais o Fórum Social Mundial será eventualmente o mais representativo - legitimar-se num sistema de governação cuja lógica é actualmente tão limitada?

O Fórum Social Mundial (FSM) constitui ainda uma alternativa muito válida para a troca de ideias e para a discussão de estratégias, assumindo-se como uma óptima forma de trabalho em rede e uma óptima oportunidade para as pessoas se integrarem na comunidade activista. No entanto, tendo tido oportunidade de participar e de conhecer de perto tanto o Fórum Social Mundial como o Fórum Mundial de Educação, penso que ele está ao mesmo tempo a institucionalizar-se de uma forma que procura ser mais compatível com o capitalismo, correndo o perigo de vir a tornar-se mais simbólico do que protagonista da mudança. Julgo que, nesse sentido, precisa de voltar aos seus objectivos iniciais de luta transnacional anti-capitalista e pró-activa, afirmando-se numa lógica alternativa diferente.

A propósito de alternativa: faz parte de uma lista negra designada "The Dirty Thirty List", que reúne aqueles que, segundo o autor, são os 30 professores universitários mais "perigosos" e subversivos da UCLA. Até que ponto encara isto como um elogio?

Depende de quem está por trás da sua autoria. Há um livro escrito por um fanático, intitulado "Os 101 mais perigosos professores dos Estados Unidos", no qual eu não fui incluído. Mas muitos dos meus colegas da UCLA foram. E penso que a razão pela qual eu não fui incluído deve-se ao facto de o autor não ter olhado com muita atenção para os docentes da área da educação (incluiu apenas um ou dois) e de o objecto da sua pesquisa ter incidido sobretudo em professores da área das ciências políticas e sociais.
Mas nessa lista dos 30 professores mais subversivos do campus da UCLA eu fui, de facto, colocado em primeiro lugar. E nesse caso porque a pessoa que elaborou a lista (Andrew Jones) estava interessado na área da educação, designadamente no poder que esses professores têm na criação de programas de formação para professores que vão integrar os quadros das escolas públicas e a sua eventual influência nos jovens. Esta história ficou muito conhecida porque o autor oferecia dinheiro aos estudantes para filmar as minhas aulas e as de colegas meus conotados com a esquerda. Mas acho que não passou simplesmente de uma forma de esta pessoa atrair publicidade para si próprio.

Sente que existe uma nova "caça às bruxas" nos Estados Unidos, à semelhança daquela que foi conduzida por McCarthy nos anos 50?

Sim, existe claramente uma nova caça às bruxas. Considero-a, aliás, pior do que a dos anos 50 porque não incide apenas sobre personalidades proeminentes, como acontecia, mas tem lugar nas escolas públicas e nas universidades. Há actualmente uma pressão enorme para silenciar aqueles que criticam a política interna e externa dos Estados Unidos. É perfeitamente possível a um estudante, por exemplo, gravar uma intervenção de um professor a criticar as opções do presidente Bush no Iraque e levá-la a uma estação de rádio para ser difundida publicamente, fazendo com que milhares de pessoas façam pressão para esse professor ser despedido: pais e mães que têm os filhos no Iraque, pessoas que detestam liberais, etc. O país está de facto dividido entre conservadores, liberais, liberais de esquerda, mas é sobretudo dominado por pessoas de centro direita. Depois há grupos fanáticos que, estando muito bem organizados, quando querem atingir alguém conseguem fazê-lo de forma muito eficaz. Dessa forma, os professores tendem a auto-censurar-se.

Vive-se, portanto, um ambiente de medo?

Sim, claramente. E apesar de considerar que é perigoso estabelecer uma comparação entre os Estados Unidos e a Alemanha nazi, em alguns aspectos não considero exagerado fazê-lo. É a táctica da disseminação da mentira para incutir o medo nas pessoas?

A fabricação do medo?

A fabricação do medo, claramente, que era uma técnica nazi utilizada por Goebbels e que demonstrou poder controlar um país inteiro incutindo nos cidadãos o pânico, a ansiedade e o medo. E é precisamente nisso que os republicanos são especialistas. O argumento é: se não matamos os terroristas no Iraque eles virão para os Estados Unidos. O que preferem: matá-los lá ou no nosso país?
Este tipo de propaganda está tornar pessoas honestas e razoáveis em terroristas. O termo terrorista aplica-se agora a uma infinidade de situações. Se uma pessoa acende uma fogueira num monte corre o risco de o considerarem um terrorista ambiental. Nesta lógica, não me admiraria que passassem a designar os professores radicais como terroristas ideológicos e nos metam na prisão com o silêncio cúmplice da opinião pública. É isto que se passa desde o dia 11 de Setembro de 2001: uma política de medo sob a qual todos aqueles que põem em causa as políticas de Washington podem, a qualquer momento, serem acusados de traição, anti-americanismo e mesmo de envenenar as mentes dos nossos jovens.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Peter McLaren
Professor de ciências sociais da Universidade da Califórnia
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Peter McLaren
Professor de ciências sociais da Universidade da Califórnia
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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