Estávamos em Março de 1935. Lembro-me bem do vestido que trazia nesse dia, com uma gola de renda muito bonita que quase o fazia novo. Habilidades da minha mãe para enganar as dificuldades de comprar vestidos novos, mas satisfazer a garridice de menina. Tínhamos começado a aula, a professora, D. Clotilde, muito direita diante do quadro. Ia explicar-nos as fracções: um sobre dois, metade de uma unidade. Falou-nos de um bolo partido ao meio (duas partes, e metade, uma parte dessa duas?), desenhou-o no quadro. E, de repente a D. Clotilde deitou a mão à orelha esquerda e ficou muito pálida e muito séria. Depois, ainda a estou a ver, soltou um grito abafado: - Ai o meu brinco, o meu brinco! Perdi o meu brinco, Meu Deus! - E é muito valioso, professora? Perguntou uma de nós. - É, é muito valioso, tem um brilhante, mas sobretudo é muito importante porque foi um presente do meu marido e nem sei o que vou dizer? Não sabíamos exactamente o que era um brilhante mas sabíamos que devia ser alguma coisa muito especial, se calhar muito cara, até porque nas histórias todas as princesas e rainhas tinham vestidos e coroas com brilhantes. - Se calhar perdeu-o em casa, ficou lá? - Se calhar ficou _ respondeu ela com um sobressalto de esperança nos olhos. Acho que ainda vou a casa num saltinho (a casa era mesmo ali perto). Uma de vocês vem comigo para me ajudar a procurar. Levantámos todas as mãos num alvoroço a oferecermo-nos para ir com a professora. Ir a casa da professora era um desejo de todas nós, um desejo enorme, misto de curiosidade e expectativa. Como seria a casa da professora? Como seria a sala, a entrada, que coisas fantásticas estariam lá, ou seria como a nossa casa? Seria uma casa mágica, de onde ela saia todas as manhãs para se encontrar connosco, ou seria uma casa como as que nós conhecíamos? O meu coração batia enquanto a professora nos olhava e tomava uma decisão. Oxalá me escolha a mim, oxalá me escolha a mim, repetia eu baixinho. Então a D. Clotilde chamou pela Teresa. E eu senti-me coberta de uma nuvem escura de decepção. Mas logo a professora acrescentou: - A Teresa fica a tomar conta da sala. Vão todos estudar aí, na página 20, tudo sobre as fracções. Podem fazer esse exercício com um sobre dois. Já sabem, metade do todo. Meio? - E quem vai com a professora? Foi aí que o meu coração disparou. A professora virou-se para mim e disse: vens tu. Uma alegria enorme subiu por dentro de mim, levantei-me de um pulo e evitei olhar a decepção e, provavelmente, alguma inveja das minhas colegas. Ia finalmente ver a casa da professora. Pelo caminho a professora mostrou-me o outro brinco e explicou-me que eu podia ver uma coisa a brilhar. Logo no início da rua, antes de chegarmos a casa da professora, eu vi uma coisa a brilhar na erva ao lado do passeio. O meu coração saltou, e quase sufoquei. Era o brinco da professora, ali no meio da erva, tinha a certeza, igual ao outro. Mas se eu dissesse, já não ia a casa da professora. E ela ia cada vez mais depressa, de passo rápido, nem dava tempo para pesar a minha consciência. E se não digo e depois, à vinda já não está lá? Era uma grande responsabilidade, um grande pecado. Mas calei-me. Chegámos a casa, entrámos e afinal a casa era parecida com outras casas que eu conhecia, só tinha a mais uma estante com muitos livros e na sala um rádio parecido com um que nós tínhamos em minha casa. Procurámos a casa toda e o brinco, claro, não apareceu. No regresso eu vinha aflita, culpada e cheia de remorsos. E se, ao passar, o brinco já não estivesse lá? Ia ser um grande pecado! Mas ao passar, o brinco lá estava, sobre a relva, a brilhar. Foi um alívio. Afinal tinha só sido meio pecado.
Angelina Carvalho
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