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O País das Anedotas!...

Eis, aí, o que ainda tem de chamar-se um país - Portugal - eternamente espar-tilhado e comprimido num Esquema estereotipado de relacionamento entre o Senhor e Amo e Patrão, dum lado, e do outro, o Escravo, Servo, Súbdito!... Não temos sido, real-mente, como Colectividade nacional, outra coisa (salvas muito raras excepções...), ao longo de quase meia dúzia de séculos, - desde a fatídica batalha de Alfarrobeira (Maio de 1449), entre o Infante Dom Pedro, ex-Regente do Reino e Duque de Coimbra, acom-panhado dos homens dignos e nobres como Ele, dum lado, e do outro, o rei D. Afonso V e o seu tio bastardo, D. Afonso, conde de Barcelos/Bragança, transfigurados em coman-dantes da vilania nacional!... 'Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão'!...
Anedotas, chistes, piadas, adágios, provérbios, anexins... ? Portugal é, sem dúvida, como nenhum outro, o país das anedotas... o 'Portugal dos Pequenitos', desde Alfarrobeira!... É preciso ir a Coimbra, visitar a 'exposição' permanente de 'O Portugal dos Pequenitos' (posto em marcha a partir do Centenário celebrado em 1940), para entrar nesta atmosfera mítica e percebê-la bem! E, antes de tudo, é preciso reestudar e compre-ender a História nacional - focalizada ao 3º grau, como temos defendido ?, mas apre-endê-la de modo crítico, não à maneira de súbditos ingénuos e resignados, sempre 'leva-dos', de uma forma ou de outra, pelos seus Chefes!... Porque, afinal, (em primeira ou úl-tima análise), continuamos a ser uma Sociedade nacional, sem sociedade civil... Eis a principal razão por que nos achamos sempre 'abertos' (uma 'sociedade fechada', esti-gmatizada pela sua megalomania e estupidez!...) a tudo o que proceda ou irrompa da 'es-tranja', em território nacional!...
Temos uma bem recheada e rica colecção (museológica...) de provérbios e adágios populares, ? desde logo a que foi recolhida e organizada por José Ricardo Marques da Costa, sob o título: 'O LIVRO DOS PROVÉRBIOS PORTUGUESES' (Edit. Presença, Lisboa, 1999). Entre outros manuais...
Mas é preciso continuar essa Crestomatia das anedotas e piadas nacionais, normal-mente suscitadas pelos desmandos e desnortes da governação ou pelos 'bons e exempla-res' comportamentos (!...) de quem é detentor dos Poderes estabelecidos. Não se trata, pois, de uma Tradição morta, recolhida em livros e bibliotecas empoeiradas e bolorentas, ou em espaços de museu!... Trata-se, afinal, de um filão nacional/luso sempre a jorrar co-mo de uma 'fonte natural', ? uma Traditio viva. É a válvula de escape psico-sócio-cul-tural, que ainda nos resta... Nas mais diversas situações, na taberna ou na sala de confe-rências, no adro da igreja, no café ou na sala de aula, o luso bem apessoado está sempre pronto para desferir uma boa anedota, nem que a tenha recolhido no Almanaque ou no Borda d'Água, que na cartilha da Instrução Primária é muito difícil encontrá-las. O hu-mor e a sátira não casam com o exercício dos Poderes!... (Prima facie...).
Mais: nós até entendemos, que todo e qualquer governante ou dirigente político (se-jam eles ministros ou presidentes da República, ou chefes plenipotenciários de partidos políticos...), todos eles, antes de tomar posse do cargo para que foram, supostamente, eleitos ou nomeados (que é quase sempre o que acontece... mesmo nos casos de eleição por suposto sufrágio secreto, directo e universal), deveriam fazer um tirocínio de aprendizagem no Anedotário Nacional, dirigido por um bom mestre do tipo Bordalo Pinheiro e seu inapagável ícone: 'o Zé-Povinho e o seu malsinado Manguito'!... Não é, afinal, através do Desespero que nos é facultada a Esperança?!...
De facto, o Anedotário Nacional luso é de uma verve, ora grosseira ora fina (para todos os gostos...), de uma riqueza luxuriante e inaudita que não tem parelha, na Enciclo-pédia das Anedotas e dos Provérbios dos mais diferentes países e nações à face da Ter-ra; - uma Nação como a nossa, que os papas de Roma sempre porfiaram em que fosse dirigida e governada imperialmente, em nome de Xto ? dizem eles!... ?, mas vendo as coisas criticamente, só e apenas em nome próprio e de quem não sabe fazer outra coisa senão incensar e cultuar a sempiterna Potestas (sacra) ? Dominação d'abord.
Não é verdade ? até através da Saga dos Descobrimentos Marítimos, em que eles foram pioneiros ? que os portugueses se tornaram o novo 'povo eleito' da Cristandade (ocidental...), o povo querido do Papa de Roma que, nos sécs XV-XVI, adregou de co-meçar a navegar pelo desconfinado Mar-Oceano, sempre com a missão e o fito de expan-dir o Império e a Fé em Cristo?!... Ainda sob o reinado do inteligente e bem avisado rei D. João II, 'o Príncipe Perfeito', o papa de Roma, Alexandre VI, logo reconheceu pronta-mente o pioneirismo dos portugueses, diante dos seus rivais espanhóis (ele que era espa-nhol de ascendência...), no celebérrimo 'Tratado de Tordesilhas' (1494), cuja confirma-ção, para que não restassem dúvidas, D. Manuel I solicitou, em 1506, ao papa Júlio II. Ainda recentemente, ao celebrar o '10 de Junho' em Viana do Castelo, o Presidente da República Cavaco Silva teve a ideia de evocar, aí, 'o dia da Raça'... Como é fecundo, na sua facúndia, o Anedotário nacional!... 'Quem não tem cão, caça com gato'!...
Quem não é capaz de verificar e reconhecer (e daí tirar partido...) a importância ideológica e cultural das Anedotas e Provérbios de um Povo? Não exprimem e paten-teiam esses fenómenos ideológico-crítico-culturais a Sabedoria extravasante de toda uma Nação, a sua vera e autêntica Filosofia Popular?! Como se dá conta, já não se trata, aqui, de matéria de Lições debitadas por filósofos ou mestres insignes, a quem o rei ou presidente atribuíram a comenda da Liberdade ou da Ordem de Santiago ou da Torre e Espada!... Nada disso... estamos, afinal, perante um vero Dilúvio de Sabença popular, em que o povo luso não foi nada avarento... pelo contrário, divulgou-a, propalou-a, até che-gar aos quatro cantos da Terra. Dir-se-á, mesmo, que a intercomunicação, no Oceano sem fronteiras do Anedotário nacional luso, constitui a prova de excelência em que os portugueses sempre se mostraram exímios, no concernente aos desígnios de realização da utopia da Igualdade sócio-cultural. Poderão roer as unhas de raiva os cidadãos comuns e mortais, no atinente à realização da Igualdade social efectiva de cidadãos e de trabalhadores, num Estado-Nação que se preze... Mas não podem, por nada deste mundo, deixar de participar no Banquete comum (nesse 'Bodo' oferecido pelos magnatas à gente simples e pobre!...) das Anedotas e das Piadas nacionais!...
Ah, como eu estou a ouvi-los, quer nas poucas horas de ócio e descanso, quer nos intervalos ritmados dos tempos de trabalho!... Agora, até mais acirrados e obstinados do que acontecia anteriormente... por causa da malvada legislação que proibiu a 'fumaça' em tudo quanto é sítio!... Em tom de pena e lamento, logo dizem os primeiros que encon-trei no Café da Baixa: Nesta matéria não foram tão longe, por ex., os espanhóis, os ale-mães, os franceses ou os ingleses!... Aí, são mais educados e adultos, e os Poderes esta-belecidos não podem actuar sobre os seus súbditos, em clima de rebaldaria e vingança, como quem espreme simplesmente uma esponja de limpeza de sanita!...
Outros, de semblante mais alegre e bem disposto (mas que, afinal, continuam a sentir a castração de não poderem passar da teoria à prática, i.e., da retórica à acção efecti-va, num processo susceptível de começar a mudar as realidades nacionais), logo os vi a desfiar, altivamente, a sua consabida Ladaínha:
- 'Um fraco rei faz fraca a forte gente' (mote de que não se esqueceu o próprio Príncipe dos Poetas portugueses, Luís Vaz de Camões, no Canto III (estrofe 138) de 'Os Lusíadas', a respeito do rei D. Fernando e suas incapacidades políticas, o qual veio a dei-xar cair a 'situação nacional' nesse atoleiro, que foi a necessária revolução popular de 1383-1385, conduzida pelo popularmente aclamado Mestre de Aviz, D. João.
- 'Com o teu amo não jogues as peras'!... Relações amigas entre os subalternos e os Chefes, só se forem estabelecidas por iniciativa dos segundos... De contrário corres o risco de te enlamearem o rosto com o outro anexim conhecido: 'Não vá o sapateiro além da sua chinela'!...
? Afinal, a ordem das Coisas e da Sociedade é simples: ' Manda quem pode, obe-dece quem deve'!... Fica tudo arruinado, quando os súbditos querem ser iguais aos seus amos e chefes... Quer isso dizer que se inverteu a 'ordem natural' das coisas!... O salaza-rismo e os nazismos/fascismos, é precisamente esta 'ordem natural' das coisas que pre-conizam e doutrinam. E têm 'bons' mestres onde se inspiraram e aprenderam toda essa Doutrina: os Papas imperiais de Roma, os teólogos, os padres e os doutrinadores da Cris-tandade (ocidental e oriental).
- Não diz o povo, no seu refrão conhecido: 'Se houvera quem me ensinara, quem aprendia era eu'!... O Povo soube pôr-se no seu lugar!... Assumiu a sua condição de súb-dito e ficou contente... até porque sabe que 'tristezas não pagam dívidas', e ele ? como é bem sabido ? está encalacrado da cabeça aos pés!...
'Não me chateiem mais!' ? Dirá o Filho do Homem/Filho do Povo. Advirta-se que, ao contrário do Povo ? que, apesar de tudo, é capaz muitas vezes de posições críticas, pelo menos in actu exercito ?, o Filho do Homem/filho do Povo toma as suas posições críticas, duplamente, in actu signato e in actu exercito. Por isso, ele se constitui, justa-mente, como o vero e autêntico Mestre do Povo, a que pertence, sem exclusivismos, to-davia, de qualquer espécie.
Enquanto Vocês, doutrinadores encartados do Establishment, não virarem anarcas efectivos, o primado será sempre, institucionalmente, do Poder sobre o Saber; o hori-zonte, afinal, das Sociedades tradicionais que se encontra nos antípodas do Pensamento crítico dos judeo-cristãos primevos, onde se configurou Jesus (que outros logo apodaram ingénua mas astuciosamente de Cristo) e seu Evangelho.
Sobre as velhas e tradicionais controvérsias entre o vero Pensamento dos Gnósticos e a doutrina ideológico-teológica da Cristandade tradicional e do Cristianismo paulino, ve-ja-se o Livro antológico, de uma equipa de Autores, subordinado ao título: 'Debates Pa-ralelos/Vol. 4: A Palavra Jesuana, Textos Gnósticos & Outras Opiniões' (Edicon, São Paulo, Br., 2007).

Post-Scriptum:
Uma anedota, como parergo, extraída da Internet, e que dá pelo título: 'Fino Humor Alentejano'.
Andava o engenheiro Sócrates em campanha pelo Alentejo, quando se depara com um alentejano a descansar. Decide, então, impingir-lhe a lenga-lenga do seu discurso de campanha. Ficaram os dois, alí, a trocar palavras, até que Sócrates lhe perguntou:
- 'Se tivesse que trabalhar para o PCP, quantas horas faria por dia?'
- 'Para o PC?... Nenhuma'.
O engenheiro, todo contente, ao saber que este, pelo menos, não era comuna, dirigiu--lhe logo outra pergunta.
- 'E para o CDS-PP, quantas horas faria?'
- 'Bom, para esses, trabalhava umas 3 ou 4 horas diárias'.
- 'E para o PSD?'
- 'Ah, para esses, já trabalhava umas 8, vá lá, 10 horas'.
- 'E, aqui, para o meu PS?'.
- 'Oh engenheiro, trabalharia as horas que fossem necessárias... 24, sem parar!...'
Sócrates ficou deveras impressionado com a dedicação que o homem lhe havia mos-trado; e disse-lhe a concluir:
- 'Assim é que é compadre; esforço e empenhamento, é disso mesmo que precisa-mos. Diga-me, por último, qual é mesmo a sua profissão?'
- 'Sou coveiro'.
Já repararam na semântica super-nobre da palavra anedota? Através do francês anec-dote, ela vai buscar o seu étimo remoto ao vocábulo grego anékdotos, cujo significado é o inédito, original. Mas atenção: Para bom auto-governo da Humanidade e das Socie-dades humanas, enquanto tais, a boa e sã e crítica Filosofia deve prevalecer sempre sobre a Tendência para os Provérbios e as Anedotas.

Manuel Reis


  
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães
Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães

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