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Bases de dados de perfis genéticos ? a segurança e o "Big Brother"

A Assembleia da República aprovou recentemente a criação de uma base de dados de DNA para fins de identificação civil e criminal, num processo que passou quase despercebido.
A utilização de testes de DNA para fins de identificação entra-nos diariamente em casa pela televisão, das novelas e séries policiais, aos noticiários (recorde-se o caso Maddie). Estes testes permitem obter uma identificação quase 100% segura do "proprietário" de uma amostra de sangue (ou outro tipo de material "humano") encontrada num local de interesse, ou ainda indicar quem foram os "dadores" (pais biológicos) do material genético de um indivíduo. Para isto não é necessário analisar todo o nosso DNA à procura dos aspectos que nos tornam únicos ou parecidos com os nossos pais. Na verdade, é possível obter informação suficiente a partir de regiões que são altamente variáveis na espécie humana e, simultaneamente, não contribuem para as características físicas do indivíduo. Estas regiões apresentam sequências repetidas (p.e., a sequência TTG/TTG) em número variável, ou seja, dependendo do indivíduo, esta pode surgir 2, 3, ou 30 vezes repetida. A única limitação (ou vantagem) é que, tendo o nosso material genético origem nos nossos pais, eles terão em regra de ter o mesmo número de repetições.
Se considerarmos 13 regiões variáveis deste tipo, que se transmitem de forma independente ao longo das gerações, e calcularmos o número de combinações possíveis que podemos encontrar, chegamos a um valor... muito superior ao número de habitantes do planeta terra. Assim sendo, do ponto de vista de probabilidade, cada ser humano (excluindo o caso dos gémeos idênticos) pode ser representado por um conjunto de 13 números que funcionam como uma espécie de código de barras de identificação, uma impressão digital genética análoga à impressão digital que já há várias décadas utilizamos. Como é fácil de perceber, do ponto de vista de recolha, armazenamento, análise e comparação de informação, é muito mais simples lidar com um código de 13 números, do que com uma marca complexa de linhas.
É desta forma que é possível determinar se o sangue encontrado numa cena de crime pertence ou não ao indivíduo X, desde que se tenha acesso a uma amostra que comprovadamente pertence a esse indivíduo, o que justifica o interesse na criação de uma base de dados. Evidentemente que isso não diz se o indivíduo cometeu ou foi vítima de crime no local ? apenas diz que ali deixou o seu sangue.
A presente lei prevê que em Portugal se passe a armazenar a informação de perfis genéticos de cidadãos, para ser usada como referência no contexto de situações deste tipo. Mas os motivos para se constar, ou não, na base de dados podem facilmente assumir contornos discutíveis. Assim, para além dos voluntários que queiram integrar a base de dados, em Portugal serão identificados por este meio os indivíduos condenados a penas de prisão superiores a 3 anos. No Reino Unido, onde existe a maior e mais antiga base de dados de DNA do mundo, as amostras são recolhidas sempre que há uma detenção policial, tendo-se verificado que existe actualmente informação relativa a cerca de 24 000 crianças entre os 10 e os 17 anos e a um número desmesurado de homens de origem africana, facto que deu origem a grande discussão interna. Que objectivos serve afinal a criação (dispendiosa) de uma base de dados deste tipo?
Casos reais na Inglaterra ilustram como vantagem a identificação e prisão rápida de homicidas em série por já se encontrarem cadastrados. Mas estaremos então a assumir os cidadãos como potenciais criminosos que importa controlar?
Em contraste, a organização norte-americana "The innocence project" tem recorrido aos perfis genéticos e bases de dados para libertar largas dezenas de presos inocentes. Úteis ou perigosas, estas aplicações da ciência ao quotidiano não devem ficar à margem da sociedade, que precisa dos seus cidadãos cada vez mais bem informados sobre temas cada vez mais complexos.

Margarida Gama Carvalho


  
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

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