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(Quase) tudo o que sei foi a escola que me ensinou

Em criança ambicionava chegar depressa ao futuro. Em idade adulta, basta-me o presente e, não raras vezes, o pensamento foge para o passado. Lembro-me muitas vezes da(s) escola(s) por onde passei, embora os primeiros anos não augurassem um bom percurso académico: detestei a Escola Primária. A passagem para outros níveis de ensino inverteu essa tumultuosa relação. Aproprio-me aqui de um livro de Robert Fulghum, intitulado "Tudo que eu devia saber na vida aprendi no jardim-de-infância", para reconhecer que a escola teve um papel decisivo na minha construção enquanto pessoa. Muitas vezes só percebemos a importância de certas vivências passado algum tempo.
Não sei se a escola é um lugar central no quotidiano dos adolescentes. Hoje há tanta diversão, tanta liberdade, tanta coisa para fazer que ela será um ponto de passagem num dia com outras actividades. Não era assim no meu tempo. Faz impressão escrever isto: no meu tempo. Estou na franja dos 30 anos. Já deixei há muito o estatuto de aluna, embora o estudo preencha parte substancial dos meus dias. É isso que me habilita a dar aulas na Universidade, a fazer investigação académica, a participar em congressos, a escrever livros... Na génese de todo este caminho, está um grupo de professores que me ensinou aquilo que hoje sei: a aprender a aprender, a querer saber mais? Tenho uma profunda admiração por aqueles que foram os meus mestres ao longo da vida. No entanto, as minhas memórias da escola são toldadas por uma passagem pelo Ensino Primário algo conturbada.
Pretendia ser uma escola modelo, aquela que eu frequentei nos primeiros anos. Nela apenas entrava a elite. Era privada e muito cara. Pela proximidade de minha casa, eis-me na primeira classe no meio de "betinhos". Quase todos tratados por um diminutivo. Quase todos oriundos de uma família de referência. Esse mundo à parte era acentuado por professores que nos ordenavam na sala-de-aula de acordo com o estatuto social das nossas famílias. Frequentei aquela escola até à quarta classe e, durante esses anos, habituei-me a observar os meus colegas com atenção. Lembro-me bem daqueles que se sentavam nas primeiras filas e das suas roupas. Sempre muito elogiadas pelos professores. De quando em vez, recupero o rasto desses colegas a quem a escola não terá ajudado a manter o estatuto que ostentavam. No meu caso, aquele Ensino Primário proporcionou-me a aprendizagem de valores fundamentais: a igualdade, a justiça, o empenho individual? Valores ausentes da minha escola e que, por isso, se tornaram tão marcantes nos primeiros anos do meu crescimento.
Abandonei os "queques" e cai na turma mais problemática de uma Escola Preparatória. Confesso que a mudança foi abrupta, mas consegui adaptar-me. Lembro-me de algumas matérias e das professoras de Português, de Francês e de História (com uma enorme dedicação aos alunos). A passagem para a Escola Secundária foi rápida e é aí que, actualmente, o meu pensamento mais se refugia. Lembro-me bem do espaço. Foi o pavilhão à esquerda da entrada da escola que eu mais frequentei. Tive lá muitas aulas. De Português, de Francês, de Matemática, de Trabalhos Manuais? À direita do portão principal, atrás da secretaria, outro pavilhão: era lá que eu tinha as aulas de História, de Latim, de Química, de Biologia? Fiquei ainda com as imagens das correrias pelas escadas (que estreitas eram!) para aproveitar ao máximo os intervalos?
Dos professores, recordo-me de (quase) todos. Da professora de História do 10º ano que, pelo Natal, nos entregou postais (um para cada aluno). Do professor de Latim, de humor sarcástico e de um rigor irrepreensível pela gramática. Das professoras de Ciências, sempre de bata branca, cujas experiências nos laboratórios me transportavam para ambientes próximos de alguns livros de mistério que eu gostava tanto de ler. Do professor de Matemática, de altura respeitável, que me tratava por "menina" e me soube transmitir o gosto por uma matéria intricada para a maioria dos estudantes. Da professora de Francês que me incentivou a ler o primeiro livro em língua estrangeira. E de todas as professoras de Português, a minha disciplina preferida. Foram elas (eram todas mulheres) que me iniciaram nos sermões do Padre António Vieira, na poesia camoniana, na prosa do Eça? Ensinaram-me aquilo de que mais gostavam. Com grande mestria e dedicação.
Dos colegas guardo também gratas recordações. Alguns deles continuam meus amigos. Seguiram cursos superiores diferentes. Estudaram noutras cidades, mas lá nos reunimos para um café ou um jantar. Tantas brincadeiras juntos, tanto crescimento lado a lado. Parte das minhas memórias felizes pertencem a esse tempo. Onde a escola era um lugar central. Na minha vida e na vida de tantos outros colegas.

Felisbela Lopes


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Felisbela Lopes
Professora de Jornalismo na Universidade do Minho
Felisbela Lopes
Professora de Jornalismo na Universidade do Minho

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