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É indispensável que as escolas se sintam mais acompanhadas

Francisco Jacinto, Licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, é professor do ensino secundário na área de Electrotecnia, tendo iniciado a sua carreira no ensino em 1972. É actualmente professor na Escola Secundária da Maia. A par da sua actividade docente, é também Investigador na área da Educação e da Formação na Fundação Manuel Leão e foi colaborador da Associação Empresarial de Portugal entre 1998 e 2003, onde dirigiu a Escola Tecnológica Triálogo.
Ao longo do seu percurso, desempenhou diversos cargos de direcção nas escolas onde exerceu actividade (Presidente do Conselho Directivo, Presidente da Assembleia de Escola, Presidente do Conselho Pedagógico), tendo assumido a presidência da Assembleia da Escola Secundária Infante D. Henrique entre 2000 e 2003.
No âmbito da sua actividade na área do ensino profissional foi membro do Conselho Consultivo da delegação do Norte do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), da representação de Portugal no Comité Consultivo para a Formação Profissional da União Europeia, da Comissão Permanente para a Certificação no IEFP, do Conselho Nacional de Qualidade e do Conselho de Administração do Instituto de Emprego e Formação Profissional IEFP. Assumiu igualmente cargos na administração pública, tendo sido designadamente Director-Adjunto do Departamento do Ensino Secundário do Ministério da Educação, Director do Gabinete de Educação Tecnológica e Profissional do Ministério da Educação (GETAP) e coordenador da equipa responsável pelo ensino técnicoprofissional no Ministério da Educação. Francisco Jacinto é ainda consultor na área da formação em várias empresas, sendo co-autor de vários estudos nas áreas da educação e da formação profissional.

O isolamento destrói projectos não os constrói

A formação profissional deve afirmar-se pela aceitação social

Qual tem sido a evolução do ensino profissional desde o 25 de Abril para cá?

O ensino profissional atravessa uma primeira fase de mudança ainda antes do 25 de Abril, através da reforma Veiga Simão, a qual pretendeu dar-lhe uma outra visibilidade social e que, na prática, o licealizou. Essa mudança teve, na minha opinião, um aspecto nefasto, já que, se até então, o ensino técnico tinha alguma credibilidade, ainda que fosse considerado uma formação socialmente inferior, a partir do momento em que se licealizou passou a privilegiar o prosseguimento de estudos para o ensino superior. Após o 25 de Abril o ensino foi unificado e tudo aquilo que existia em termos de formação profissionalizante esmorece.
Em 1983 implementa-se o ensino técnico-profissional nas escolas secundárias, fruto de alguns estudos que, de certo modo, relançavam a importância deste subsector de ensino. Ainda assim, e este aspecto parece-me significativo, mais do que apostar na qualidade da formação, a bandeira que era agitada era a da possibilidade de acesso ao ensino superior, o que demonstra bem a subordinação que já nessa altura existia.
A aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1986, marca um aspecto importante na medida em que afirma o carácter terminal do ensino secundário. À partida, esta determinação permitia aos alunos a entrada na vida activa ou para o prosseguimento de estudos, mas continua a haver, de alguma maneira, uma predominância do acesso ao ensino superior. Dois anos depois, em 1988, são lançadas as escolas profissionais, imprimindo um impulso significativo neste subsector de ensino. Um dos factores que concorre para isso é o envolvimento de diferentes entidades da sociedade civil, desde associações empresariais, sindicatos, empresas e colectividades, fazendo com que haja uma subversão do próprio sistema educativo, até essa altura muito estatizante e onde a intervenção do sector privado se limitava a áreas onde o Estado não conseguia dar resposta. Igualmente importante foi o envolvimento do poder local, que, estando muito mais próximo das diferentes realidades locais, naturalmente conseguiam fazer uma aplicação mais directa das necessidades. A partir da década de 90 o ensino profissional estagna na sua evolução.

Quais os motivos para essa estagnação?

Não pela impossibilidade de crescimento do sistema. Num estudo realizado em 2001, no qual tive oportunidade de participar, verificou-se que o numerus clausus mais elevado do sistema educativo era o do ensino profissional, com valores que rondavam os 50 por cento. As razões prendem-se sobretudo com o financiamento, já que o subsistema das escolas profissionais foi implementado recorrendo a fundos comunitários do Fundo Social Europeu. E essa situação vem-se mantendo desde então. Ao contrário das declarações dos responsáveis políticos, que afirmam existir um crescimento sustentado no número de alunos inscritos, essa percentagem tem-se mantido praticamente inalterada, o que me leva a pensar que não passam de propaganda dos diferentes ministérios.

Há dois anos o Ministério da Educação integrou o ensino profissional em todas as escolas secundárias.
O que lhe parece esta medida?

Na minha opinião o processo não foi conduzido da melhor forma, sobretudo quando implicou acabar com os cursos tecnológicos, que haviam sido criados em 1993. Como já vem sendo hábito, as medidas implementam-se sem se proceder a qualquer tipo de avaliação relativamente ao que foi feito para trás. E isto lança um certo receio pelo descrédito de todo o sistema.
Além disso, esta reestruturação esquece um aspecto importante: o princípio de que a formação incentiva quase invariavelmente a procura de mais formação.
Embora não se consigam ver para já os resultados práticos desta mudança, estou convencido de que muitos dos jovens que estão a frequentar o ensino profissional nas escolas secundárias só irão ser confrontados com uma grande dificuldade no prosseguimento de estudos quando concluírem o ensino secundário. Por outro lado, esta generalização a todas as escolas secundárias foi feita sem qualquer preparação, nomeadamente no que se refere à formação dos professores, fazendo com que o modelo que traziam do ensino generalista vá ser aplicado sem ter em atenção as especificidades do ensino profissional, geralmente mais pró-activo, envolvente, personalizado, prático.
O modelo foi simplesmente encaixado e agora os professores que se arranjem...

Partindo daquilo que foi dito, o ensino profissional parece ser eternamente encarado com alguma depreciação.
Alguma vez foi olhado de forma séria?

Eu penso que existiu uma aposta séria quando foram criadas as escolas profissionais. E é curioso verificar que quando elas são implementadas o nível etário dos alunos era mais elevado do que actualmente. À medida que o caminho foi sendo percorrido, esse nível etário foi baixando progressivamente. O ensino deve constituir apenas uma parte de um envolvimento social muito maior. A formação profissional deve afirmar-se pela aceitação social, pela qualidade, e pela própria importância que o tecido empresarial lhe confere.
No ensino público não existe autonomia por parte de cada equipa pedagógica

Como tem sido a aceitação das empresas ao longo dos anos?

É interessante verificar que quando as grandes empresas se envolvem na gestão das escolas profissionais existe uma grande aceitação. Ou seja, tudo passa pelo modo como se participa. As pessoas e as organizações têm habitualmente medo do desconhecido. E em Portugal, talvez mais do que em qualquer outro país, há uma grande desconfiança em relação à qualidade do outro. Se não estou envolvido, então não deve ser grande coisa? E esta desconfiança mantém-se ainda hoje.

Isso influencia de algum modo a taxa de sucesso?

A taxa de sobrevivência no ensino profissional, isto é, a relação entre o número de alunos inscritos no 1º ano que se mantêm no ano seguinte, nunca baixou dos 86 por cento, rondando sempre os 90 por cento. Neste ano lectivo, que correspondeu ao alargamento, baixou para 75 por cento.

Qual é a leitura que se pode fazer desse número?

A partir daqui infiro que o insucesso nas escolas públicas relativamente ao ensino profissional continua a ser exactamente igual, senão maior, do que o insucesso que existia nos cursos tecnológicos - que, recordo, foram extintos nesta reestruturação. Pelos meus cálculos, deverá rondar os 40 por cento entre o 10º e o 11º ano.

Que causas podem estar na origem desse insucesso?

Eu responderia a essa pergunta colocando outra questão: porque razão se alargou o ensino profissional a todas as escolas secundárias? Porque está habitualmente associado a bons resultados e, por isso, vamos alargá-lo ao ensino secundário. E em primeiro lugar talvez valha a pena ver porque razão é um ensino de sucesso. Na minha opinião deve-se a uma multiplicidade de factores: o envolvimento de várias entidades, a proximidade com o contexto local, o facto de terem 20 anos de experiência no terreno, a permanente ligação às empresas e aos contextos de trabalho, situações que não caracterizam habitualmente o ensino público.
Em segundo lugar, a própria autonomia das escolas profissionais. Apesar de não terem autonomia financeira, porque dependem em larga medida de financiamentos externos, o modo como fazem a sua gestão é aplicada ao grupo a que se dirigem, caracterizando-se, assim, por um ensino mais personalizado. Por outro lado, os professores têm também eles um percurso que não se cria de um momento para outro. No ensino público não existe autonomia por parte de cada equipa pedagógica, tornando-se desse modo difícil consolidar a sua personalidade de actuação; as alterações são constantes; os professores que tinham determinado percurso, muitas vezes ligado à via de ensino, transportam para o ensino profissional esse tipo de postura e de formação, muito mais académica. Por outro lado, se os próprios alunos que o procuram são empurrados nesse sentido porque têm menos êxito noutras áreas, acabam por coroar uma série de factores que vão contribuir para esse insucesso.

O Governo quer ter 50 por cento dos alunos inscritos nos cursos profissionais do ensino secundário até 2010. Essa meta é realista?

Era bom que isso acontecesse, mas não me parece que seja por este caminho que essa meta será atingida.

Rede desadequada às necessidades de formação
A actual estrutura dos cursos profissionais favorece ou não a integração dos alunos no mercado de trabalho?

Partindo da experiência das escolas profissionais, eu diria que sim. Isto, porque durante a formação os alunos têm uma experiência de trabalho, existindo uma ligação mais estreita entre o tecido produtivo e a formação que é ministrada. O que não acontecia com os cursos tecnológicos. Apesar de estes terem, nos últimos anos, a necessidade de um estágio e de apresentação de uma prova pública, as ligações entre a escola e as empresas não eram muito fortes.

E no que se refere ao ensino profissional público?

Se olharmos unicamente para a estrutura, ela teoricamente favorece essa integração. Em princípio, qualquer que seja o ensino profissional, ele só terá êxito se existir um envolvimento com as empresas, o que não acontece no ensino geral e não acontecia com o ensino tecnológico. Penso que é de todo o interesse que este tipo de ensino vá progressivamente sendo aplicado a todas as escolas. É preciso é ver como é feito.

Como caracterizaria a actual rede de oferta de formação profissional? É equilibrada? Está articulada entre si?

Num estudo recentemente realizado, chegou-se à conclusão que o ideal seria desenhar uma rede desejável, tendo em atenção as características de cada contexto local e definida através das entidades oficiais ? nomeadamente dos ministérios do planeamento, do emprego e da educação ? e sobrepô-la à rede existente de forma a ter-se uma ideia daquilo que seria necessário. No entanto, como sabemos, em Portugal o planeamento é algo que fica sempre para segundo ou terceiro plano, sendo por isso difícil afirmar que tudo está bem.
Outra das conclusões foi que quando se tratava de escolas profissionais a oferta não era suficiente, muitos candidatos ficavam de fora. Com as escolas secundárias seria necessário definir atentamente o ramo de ensino que cada escola iria ministrar. Eu sou adepto de se contemplar a existência de escolas de referência em determinadas áreas em paralelo com as escolas generalistas.

Está de certa forma a afirmar que as escolas profissionais acabam por se equilibrar porque respondem a uma oferta específica de cada contexto local, ao contrário do que acontece com a oferta do ensino profissional secundário?

Sim, embora eu defenda que ambas se devam complementar.
Não se pode encarar uma sem a outra. Mas por mais que se afirme existem pareceres que justificam a distribuição e que ela é articulada, isso de facto não corresponde à verdade.

Uma das principais reivindicações das escolas profissionais é a existência de um modelo de formação contínua de formadores, que parece não estar assegurado?

Sim, tal como acontece, de resto, com o ensino geral. Mas nesta área existe, de facto, alguma incoerência na formação, porque mesmo a existência de diferentes centros de formação não permite responder a todas as necessidades existentes. É o caso da electrotecnia, por exemplo, para a qual os centros de formação não têm oferta de formação de formadores.

É opinião consensual que Portugal continua a ter necessidade de formação de técnicos especializados.
No entanto, tendo em conta o desinvestimento no tecido produtivo português a que se tem vindo a assistir nos últimos anos até que ponto faz sentido apostar nesta área?

Eu julgo que não fará sentido é o modo como as coisas estão organizadas. Aliás, é inquietante ver ? e já ouvi alguém do Governo dizer que isso não era verdade ? como cada vez mais gente nova sai do país porque a formação que têm não é aproveitada cá? E é reconhecida noutros países, nomeadamente aqueles que consideramos mais desenvolvidos. Apesar de tudo, considero que qualquer tipo de formação é importante. É preferível haver gente com maior grau formação mesmo que esse conhecimento não tenha aplicação imediata. Quanto mais não seja porque contribui para diminuir as margens de marginalidade da sociedade. Mas de facto, do ponto de vista social, o país exige um investimento na economia que tem vindo a ser permanentemente adiado. Hoje em dia dá-se demasiada importância à finança, tornando-se possível a um investidor recolher uma série de mais-valias de um investimento de algo que nunca viu e que nunca produziu. Em muitos aspectos, vivemos uma situação de liberalismo extremo, selvagem. As empresas deslocalizam-se
actualmente com imensa facilidade e o retorno é feito não sobre a produção de um bem, isto é, sobre a criação de riqueza, mas sobre a especulação.

Actual modelo de financiamento é ineficaz
A instabilidade do modelo de financiamento do ensino profissional é uma das principais críticas de quem está directamente envolvido neste subsector de ensino. Até que ponto o actual modelo cerceia as hipóteses do seu desenvolvimento?

As queixas das escolas profissionais relativamente ao financiamento mantêm-se desde sempre, e com razão. Porque na ausência de um quadro de financiamento bem definido, como acontece, não se consegue fazer projecções a mais de um ano ou dois ? e isto para ser optimista. E o próprio ensino público começa também a sentir isso agora.
Posso dizer que de Janeiro até ao momento, e estamos praticamente no final do ano lectivo, as escolas ainda não receberam praticamente um cêntimo. E a atribuição do financiamento é feito mediante a apresentação de um comprovativo de pagamento. Ou seja, é preciso haver muito dinheiro antes para depois se receber não se sabe quando. Conheço inclusivamente professores que já me disseram que tiveram de ser eles próprios a adiantar milhares de euros do próprio bolso para honrar compromissos?

No final de Abril deste ano, aliás, as escolas profissionais estavam numa situação de ruptura?

Exactamente. Aliás, por esta altura do ano é comum a haver bastantes queixas nesse sentido. Li recentemente no semanário Expresso que alguns formadores do quadro e formadores externos não recebiam desde Janeiro. Evidentemente que os salários dos professores das escolas secundárias estão assegurados, mas não é apenas disso que vive o ensino profissional. É preciso assegurar matéria-prima, pagar os seguros dos estágios dos alunos, equipamento especializado, sem falar das despesas correntes dos responsáveis dos estágios nas suas deslocações às empresas? Ora, tudo isto cria uma grande instabilidade.
E não é suficiente dizer que há dinheiro, é preciso que ele chegue onde é necessário. No concurso deste ano, por exemplo, não foram cumpridos os prazos legais de apreciação do financiamento. E o mais perturbante é que as verbas existentes só podem ser gastas até ao termo de cada projecto, que corresponde ao final do ano lectivo, ou seja, a Julho. Assim, será muito difícil de aplicar qualquer verba que chegue agora às escolas. Tudo isto para dizer que se está a viver uma situação realmente muito complicada.

As escolas profissionais alertaram o Governo no sentido de precaver esta situação no IV Quadro Comunitário de Apoio?

Exactamente. E o actual quadro já entrou em vigor em 2007. O mais caricato é que nesta altura as escolas ainda não podem fazer sequer o lançamento da execução física do projecto e, consequentemente, não podem pedir o reembolso das despesas que já fizeram, porque não estão ainda aprovados os formulários de registo! Isto é incompreensível? No site do Programa Operacional do Potencial Humano, destinado a gerir os programas de qualificação da população activa, é dito que a partir do dia 29 de Maio os referidos formulários já estarão disponíveis. É um pouco como o mercado de futuros?.

É possível melhorar este sistema de financiamento?

É sempre possível implementar outros mecanismos, mas isso exige um acompanhamento mais próximo dos diferentes projectos. Um dos factores de êxito das escolas profissionais foi o facto de existir um acompanhamento permanente de um interlocutor, que o acompanhava quer do ponto de vista financeiro quer pedagógico. Neste alargamento do ensino profissional ao ensino público, por exemplo, esse mecanismo foi posto de parte.

Perante todas as questões que abordamos ao longo da nossa conversa, qual pode ser, na sua opinião, o futuro do ensino profissional em Portugal?

O futuro do ensino profissional dependerá sempre, acima de tudo, da vontade política. E julgo que estamos sempre a tempo de fazer uma inflexão.
Em primeiro lugar, seria indispensável fazer com que as escolas se sentissem mais acompanhadas. Quando se fala cada vez mais de funcionamento em rede e do conhecimento construído em rede, o isolamento faz cada vez menos sentido. O isolamento destrói projectos, não os constrói. Em segundo lugar, e olhando para o ensino público, é preciso que haja responsabilização. É fundamental que cada escola se sinta co-responsável na sua comunidade pelos resultados que obtém. Mas para isso é preciso que se inverta outra questão, isto é, só é possível haver responsabilização se houver autonomia.
E o processo de centralização no nosso país é cada vez mais forte. Para consultar um projecto, por exemplo, é muitas vezes preciso ir a Lisboa. E isto não tem nada a ver com guerras norte-sul. Ou seja, estou convencido de que existe futuro para o ensino profissional e de que ele é indispensável para
o país.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 179
Ano 17, Junho 2008

Autoria:

Francisco Jacinto
Professor do ensino secundário na área de Electrotecnia
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Francisco Jacinto
Professor do ensino secundário na área de Electrotecnia
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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