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Quem é julgado no julgamento de Marcelo Pomar?

"Tanto se dá glória à Deus descascando batatas quanto erguendo catedrais"
Santa Rita de Cássia

À primeira vista o julgamento de Marcelo Pomar não tem nenhum ingrediente que nos deva espantar. A criminalização dos movimentos sociais ocorre desde há muito e nela colaboram todos os grandes órgãos de informação de massas. É curioso verificar que estas acusações só surgem quando as vítimas dóceis se convertem em pessoas que lutam pelo que lhes cabe e exigem que lhes caiba mais.
Desde o século XIX que se chama «classes perigosas» às classes revolucionárias. Onde os jagunços zelam por que seja acatada a autoridade dos fazendeiros reina a ordem, e é lógico que neste paraíso dos donos da terra a desordem seja constituída pelos que, com coragem, reclamam terra para poderem sobreviver. Onde os seguranças e os policiais guardam os prédios vazios e os terrenos vagos, deixando que a especulação lhes multiplique o valor, os criminosos são, evidentemente, as famílias que exigem um tecto e quatro paredes. Assim, no tribunal de Florianópolis, no dia 13 de Maio, quem estará em causa não é o Marcelo Pomar mas o Movimento Passe-Livre, que encontrou nele um dos activistas mais corajosos e mais persistentes. A pessoa é aqui tomada pelo colectivo, como sucede na literatura com certas figuras de estilo.
Mas para além de tudo isto, que é comum a muitos outros casos, há algo de singular. É que em Florianópolis o MPL, junto a outros movimentos sociais, conseguiu impedir o aumento das tarifas dos transportes públicos em 2004 e em 2005, conquistando também em 2004 a aprovação da lei do passe livre, aliás nunca implementada, e a implementação da tarifa única nos ônibus. Ora, se os patrões e os seus governantes não gostam dos lutadores derrotados, menos ainda gostam dos vencedores, e para eles o MPL tornou-se um inimigo particularmente odiado.
Trata-se de mais do que uma simples questão de tarifas de transporte, porque o que está verdadeiramente em causa é a luta pelo controlo dos espaços públicos urbanos. A fragmentação dos colectivos de trabalhadores, a terciarização, o desemprego, a maleabilidade que os patrões conseguiram introduzir nos horários de trabalho - tudo isto aumentou a importância dos espaços públicos urbanos.
Se até há poucas décadas atrás era nas empresas que os trabalhadores teciam as suas mais fortes relações de solidariedade, agora elas processam-se também, em boa medida, nos espaços públicos. Mas para que isto suceda é necessário conquistar esses espaços, retirá-los à hegemonia dos shopping centers e imprimir-lhes outro carácter. Os piquetes na Argentina e na Bolívia, por exemplo, representaram formas muito avançadas desta conquista popular. Num âmbito mais modesto, mas nem por isso menos importante, o MPL insere-se nessa mesma luta ampla e de longo fôlego. Nesta perspectiva o MPL é ainda mais ameaçador, não só para os empresários de transportes mas para os capitalistas em geral.
Em 2004, durante a primeira revolta contra o aumento das tarifas dos ônibus, a mãe do Marcelo Pomar recebeu um telefonema anónimo dizendo-lhe para «preparar o caixão do Pomar». Em vez de mudar de cidade, Marcelo limitou-se a mudar de número de telefone. E como, apesar de tudo, Florianópolis já não é um sertão, o caixão foi preparado de outro modo, aproveitando uma provocação que está suficientemente documentada. Em poucas palavras, uma dúzia e meia de capangas musculados, heróis de academia, tentaram converter num distúrbio o que era uma pacata distribuição de panfletos, e saíram no final protegidos pela polícia. Foi mais uma das operações destinadas a criminalizar o Movimento. E o Marcelo, que no meio da confusão gritou «não lincha» para evitar que o confronto tivesse consequências mais prejudiciais, foi preso e acusado de ter apelado à linchagem.
Peço desculpa àqueles que me lerem, mas se se indignam pelo facto de Marcelo Pomar ir a tribunal quando foi ele precisamente um dos que contribuíram para que o confronto físico não se agravasse, então isto revela uma certa candura. Não estão a ver que foi precisamente este o crime que Marcelo cometeu, o de ter impedido que a provocação fosse levada até ao termo e satisfizesse os interesses de quem pagou aos arruaceiros? É este o verdadeiro motivo por que ele vai agora a julgamento.

João Bernardo


  
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Edição:

N.º 179
Ano 17, Junho 2008

Autoria:

João Bernardo
Expulso em 1965 do Ensino Universitário em Portugal, exilou-se em Paris em 1968. É hoje investigador, escritor e docente no Brasil. Autor entre outras obras de "Marx Critico de Marx"
João Bernardo
Expulso em 1965 do Ensino Universitário em Portugal, exilou-se em Paris em 1968. É hoje investigador, escritor e docente no Brasil. Autor entre outras obras de "Marx Critico de Marx"

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