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Dos modelos migratórios e das suas políticas: Quais os casamentos que não são convenientes?

A moldura penal em Portugal para o que se chama "casamentos por conveniência" de acordo com o Artigo 186 da Lei de Imigração reforçou recentemente as medidas punitivas no que os legisladores definem como a luta contra a imigração ilegal. Assim, quem contrair casamento com o único objectivo de proporcionar a obtenção ou de obter um visto ou uma autorização de residência ou defraudar a legislação vigente em matéria de aquisição da nacionalidade ou quem de forma reiterada ou organizada, fomentar ou criar condições para aquela prática é punido com prisão. A tentativa é também punível. E desta forma o Estado e os legisladores sublinham o reforço do combate à imigração ilegal.
As tradicionais formas de migração têm sido postas em articulação com outros cenários decorrentes pelos fluxos de migrações no feminino ? para além das migrações forçadas (refugiados e tráfico de seres humanos). Alguns estudiosos destas temáticas identificam mesmo o crescimento da participação das mulheres no mundo ocidental na esfera pública do trabalho como consequência da exploração de mulheres migrantes. O contexto transnacional migratório também serve para incutir outras hierarquias entre as mulheres, como por exemplo em relação à sexualidade, afectividade e conjugalidade, bem como à autonomia feminina e aos seus níveis de emancipação.
Por outro lado, em muitos contextos, o casamento é frequentemente visto e estrategicamente pensado como uma das poucas opções económicas razoáveis para a vida adulta de uma mulher. E por vezes para o homem também. Curiosamente, as migrações fazem-se sobretudo, estatisticamente falando, numa fase da vida dos sujeitos propícia ao casamento e à constituição de família ? ou seja, enquanto adulto jovem. Mas também a possibilidade de encontro de parceiro matrimonial com o mesmo capital social e cultural (ou como diria Bourdieu, habitus) será manifestamente mais difícil no processo migratório.
Todavia, este enquadramento não colhe qualquer entendimento no quadro legal agora proposto. O que preocupa o Estado é o eventual negócio matrimonial de mulheres - porque são sobretudo mulheres o objecto das investigações, embora também haja uma aumento dos casamentos de homens estrangeiros com mulheres portuguesas - e o modo de limitar essa estratégia de legalização dos imigrantes.
Consequentemente, o Estado e as leis interferem claramente na cidadania plena destes migrantes na medida em que regulam sobre o que constitui um casamento, quem pode casar com quem, e as suas políticas de imigração também podem desempenhar um grande, mas muitas vezes esquecido, papel na limitação da escolha do cônjuge. O facto de utilizarem o casamento como forma de "legalização" do cônjuge estrangeiro não deveria conferir à relação o adjectivo de conveniência, entendida esta como algo malicioso, feito por interesse e amoral.
Já no final do século XIX, comentários sobre um "mercado matrimonial internacional" se faziam destacando os fenómenos migratórios. Em boa parte, e sobretudo nos dados para os EUA, alguns desses fluxos eram marcados por um mercado matrimonial intra-étnico: esposas que eram chamadas pelos maridos, ou mulheres que casavam com imigrantes seus conterrâneos que haviam partido alguns anos atrás e já se haviam fixado e legalizado como americanos - o caso mais evidente é o dos italo-americanos. Entretanto, alguns países receptores de fluxos migratórios significativos colocaram embargos e restrições aos chamados "casamentos mistos", proibindo ou cerceando casamentos entre, e note-se, imigrantes e mulheres "brancas" do país de acolhimento. Quando os fluxos migratórios contemporâneos começam a explicitar a presença de contingentes femininos - e não apenas para reagrupamento familiar - a migração por "trabalho" e por "amor" (de acordo com proposta conceptual de Suzanne Sinke 2002 "Migration for Labor, Migration for Love: Marriage and Family Formation across Borders") tornam-se uma evidência. Nalguns casos, a imigração feminina, para além das questões económicas, permitiu ultrapassar modelos matrimoniais rígidos impostos no país de origem, nomeadamente casamentos em idades muito jovens ou com parentela; noutros permitiu criar mercados matrimoniais mais amplos; noutros ainda ampliou modelos de conjugalidade e de desempenhos de género no casamento que fragilizam a condição da mulher estrangeira nesse cenário matrimonial. A este último propósito veja-se como as agências matrimoniais a partir da década de 1970, nos EUA mas não apenas, referiam perfis de mulheres que se enquadravam em modelos dominantes de género dos anos 50 (donas de casa, maternais, fieis e dóceis, etc.).
Estas sim deveriam ser preocupações de um Estado democrático com o enquadramento das políticas de imigração e não aferir da moralidade ou do interesse subjectivo e amoral de um relacionamento.

Paulo Raposo


  
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Edição:

N.º 179
Ano 17, Junho 2008

Autoria:

Paulo Raposo
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa
Paulo Raposo
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa

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