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O ritmo da aula

Na mesa ao lado, uma mãe indignada queixava-se de o seu miúdo não querer ir para a escola, porque a professora lhe batia. Ao que parece, a mestra usava a régua como auxiliar de instrução. A senhora dirigiu-me a palavra. Eu respondi que não queria acreditar, que não considerava que fosse possível tal comportamento. Assegurou-me que sim, que tinha sido tal e qual me narrava. Procurei uma rebuscada explicação, para justificar tão estranho costume. Aleguei eventual desgaste psíquico da professora e que terá sido um incidente apenas.
Não é isso, não, professor! É quase todos os dias. Só não bate quando vai ao café.
Se as professoras vão ao café é porque não têm café na escola ? ripostei, em defesa da corporação.
O senhor não entendeu. As professoras vão ao café no tempo em que deviam estar a dar aulas. Ó professor, as escolas de hoje não são muito diferentes da que nós tivemos! A professora do meu filho até me faz lembrar a Dona Bertinha.
Tangeram a minha corda sensível, e logo perguntei: Quem é a Dona Bertinha?
Quem é, não. Quem foi! ? retorquiram os meus amigos, de quem a Dona Bertinha tinha sido mestra. E logo desfiaram uma história, que abreviarei, para não cansar o leitor.
Contrastando com a fineza de estilo de outras professoras do seu tempo ? e com o perfil que o diminutivo poderia sugerir ? a Dona Bertinha nutria ressentimentos face aos seus alunos e assumia-os. Quase no fim de uma carreira de mais de quarenta anos, a matriarca fazia questão de sublinhar que, quando morresse, queria ir para o inferno, porque o céu deveria estar cheio de criançada. A "criançada" fora culpada de uma queda, que lhe fez partir o fémur e passar metade da vida apoiada numa bengala. Este utensílio, presumivelmente utilizado no restabelecer do equilíbrio, foi recurso prodigamente utilizado "no lombo dos pequenos diabretes, que a puseram assim".
Fique sabendo o leitor que era esse rude atributo que "fazia a diferença". A Dona Bertinha era apontada como exemplo, unanimemente considerada a melhor de quantas professoras havia na região. Não porque o "seu método" fosse diferente do "método" das outras professoras, mas porque, no ocaso da carreira ? quando "a idade era um posto", como gostava de realçar ? era considerada como "uma professora que se dava ao respeito" (sic).
Não consta que se tivesse, alguma vez, questionado o "seu método", porque "a letra com sangue entra". E por convencimento de que o pior dos defeitos que um professor poderia ter era o de perder tempo a pensar. Durante mais de quarenta anos, a Dona Bertinha contou os dias que lhe faltavam para a "bendita reforma". E lá se foi, um dia, na paz dos simples, sem se ter apercebido da riqueza do pensar sobre o que se faz.
Entre a bengalada certeira da Dona Bertinha e a disciplina de caserna imposta por docentes mais recentes distam algumas décadas e nenhuma alteração no estilo. Uma distância temporal despicienda, se considerarmos serem as mudanças em educação tremendamente morosas; uma decorrência de um "tradicional" bem enraizado nos costumes.
Alguns amigos dizem-me que as aulas que dão já não são como antigamente e que, agora, as preparam cuidadosamente. Falamos diferentes linguagens. Eles falam-me de aulas "interessantes". E eu não consigo entender como pode ser interessante escutar respostas a perguntas que não se faz.
Eu sei que há professores que preparam bem as suas aulas, que definem criteriosamente os objectivos, elaboram rigorosamente um plano e elaboram materiais auxiliares de ensino. Não duvido de que sejam profundos conhecedores do assunto que vão leccionar. Mas terão pensado bem para quem vão "dar a aula"? Se todos os alunos estão aptos a recebê-la? Se todos irão aprender no mesmo tempo, do mesmo modo, no mesmo ritmo?
Dizem-me que as aulas de hoje são diferentes e melhores que as dadas antigamente. Mas "aula" não é coisa digna de ser melhorada, é coisa para ser questionada. Sem negar a pertinência de aulas, no modo de fazer escola que ainda temos, pergunto aos professores se haverá um só modo de fazer escola e se esse modo tem por recurso exclusivo a "aula". E, aqui, é que a coisa se complica?
Respondem-me, inevitavelmente, que há outros modos. Mas, se lhes pergunto quais são esses outros modos, não respondem. Ou, se algo respondem, fazem-no por sabedoria de ouvido, ou desdenhando: "essas coisas não resultam". Aí, eu pergunto se já utilizaram essas "coisas", ou que coisas são. Não respondem.
O meu amigo Manuel, bom professor à moda antiga, também me avisa:
- Ó Zé, deixa-te disso. Esses métodos não resultaram lá fora. Foi o que eu ouvi dizer. Portanto, eu cá vou dando as minhas aulinhas. Quem acompanha, acompanha. Quem não acompanha... Só tenho um problema que quero que me ajudes a resolver. Tenho lá um aluno que faz muitas perguntas e que me quebra o ritmo da aula!
Pois... o ritmo da aula. Sabem o que é? Nem eu.

José Pacheco


  
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Edição:

N.º 179
Ano 17, Junho 2008

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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