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A reforma tecnocrática, autocrática e populista da educação [II]

No texto anterior, escrito em Março do corrente ano e, portanto, ainda num momento em que o resultado das negociações entre as estruturas sindicais e o governo acerca da avaliação do desempenho dos professores era imprevisível, referia já que os cenários que iriam caracterizar as escolas portuguesas durante os próximos anos (ou até décadas) estavam já muito claros no horizonte.
Hoje, após o compromisso estabelecido entre as partes e atendendo ao modo como os diversos actores situados nas periferias do sistema educativo têm vindo a reagir aos desafios suscitados, é possível afirmar com toda a segurança que o movimento reformador concebido pelo actual governo é não só irreversível como se mantém inalterável no essencial da sua substância política, restando a esses actores a tarefa de se adaptarem o melhor que puderem e souberem às mudanças dela decorrentes. Aliás, esta estratégia «adaptativa» é aquela que os professores melhor conhecem, pois tem sido ela a presidir, de um modo hegemónico, à forma de estar e viver (n)a profissão praticamente desde 1976. Se estiver certo nesta última afirmação, então, quais as diferenças entre os anteriores movimentos reformadores e o actual e os seus significados no plano das escolas e no da construção da profissão docente?
Em primeiro lugar, importa destacar o tópico da democracia no interior das organizações educativas em questão. Com a criação de dois tipos de profissionais claramente diferenciados em que uns (professores titulares) passam a dispor de poderes efectivos sobre os percursos profissionais dos outros, poderes esses bastante regulados pela administração central no sentido de produzirem os efeitos pretendidos por esta (diminuição drástica dos custos com pessoal, essencialmente), as relações pessoais e profissionais encontram-se seriamente ameaçadas. Este agudizar e extremar das relações sociais no interior das escolas por intermédio da introdução de novos modos de regulação verticalmente hierarquizados, vistos por muitos como debilmente legitimados em todos os domínios que quisermos considerar, certamente que irá conduzir à criação de um claro fosso relacional e profissional. Assim, é a democracia que sofre o primeiro impacto com este processo de mudança, pois não me parece possível aprofundar a democracia no quadro de um sistema fortemente hierárquico que, para se afirmar, começa por estilhaçar as já de si bastante débeis relações entre pares que foi possível construir ao longo das últimas três décadas. É que, a partir desta reforma, nada ficará das escolas que todos nos habituamos a conhecer. Apesar das enormes debilidades que todos somos capazes de reconhecer no modo de funcionamento das escolas portuguesas nas últimas três décadas (e para isso basta analisar o modo como sempre lidaram com as diferenças no seu interior, embora grande parte das responsabilidades por essa situação devam ser procuradas no modo de organização do sistema educativo), penso que estas organizações constituem dos melhores exemplos daquilo que poderão ser organizações democráticas numa sociedade em que escasseiam práticas edificantes neste domínio, apesar de se afirmarem como tal. É igualmente certo que o seu funcionamento estaria bastante longe do conceito de democracia de alta intensidade tal como Boaventura de Sousa Santos tem vindo a defender, mas poderia constituir uma linha de base fundamental para a edificação de uma sociedade crescentemente democrática.
A reforma educativa em curso faz, ostensivamente, tábua rasa desse património da democracia que tão dificilmente fomos capazes de construir, no essencial de um modo não intencional, isto é, não regulado por normas formais. Ao contrário, todo este edifício formal-legal está orientado para a subversão dos débeis pilares de democracia existentes, o que configura um claro ataque à democracia em geral que tenho vindo a denunciar. Uma das curiosidades deste movimento reformador, substantivamente ademocrático, é a sua legitimação pela retórica da melhoria das aprendizagens e da qualidade de ensino! A falácia deste argumento será o objecto do próximo texto.

Manuel António Ferreira da Silva


  
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Edição:

N.º 179
Ano 17, Junho 2008

Autoria:

Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho
Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho

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