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Uma sociedade tripartida entre capitalistas, trabalhadores e excluídos do trabalho, é impensável

No sentido físico, o trabalho é um número real, que pode ser positivo ou negativo. Quando uma força actua na direcção do deslocamento, o trabalho é positivo, isto é, existe um acrescentamento de energia ao corpo ou sistema e ele desloca-se no sentido que queremos. O contrário também é verdadeiro. Uma força na direcção oposta ao deslocamento retira energia do corpo ou sistema. Dizer que se trabalha ou que se fez um grande esforço pode ser verdade, mas isso não significa que se tenham alcançado resultados positivos ou desejados.
Está na moda usar uma linguagem que utiliza a quantificação e raramente a avaliação objectiva dos resultados. O «governo trabalha muito». O primeiro-ministro faz corridas públicas matinais para dar a ideia que trabalha muito, que é possuidor de muita energia. As oposições não ficam atrás. «Lutam muito», desenvolvem «grandes batalhas». E, se calhar, todos gastam muita energia e todos se desgastam muito. Resta saber como se sente o corpo social que sofre tantos impactos energéticos.
O trabalho que aqui nos interessa considerar não é tanto o trabalho físico, mas o trabalho económico, ainda que os dois se ajudem a explicar. Numa perspectiva económica, é trabalho o que se utiliza para produzir uma mercadoria. O valor económico de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho que, em média, é necessário para a produzir. Nesta quantidade de trabalho está incluído o trabalho anteriormente gasto na produção de matérias primas, máquinas, ferramentas e na produção de conhecimentos necessários à produção da mercadoria em causa. O trabalho de ensinar (trabalho indirecto) é um valor que se irá acrescentar ao custo da produção de bens produzidos por aquele que é ensinado. Se fossemos por aí daria pano para mangas a discussão sobre o valor real do trabalho de ensinar dado o papel que ele desempenha na cadeia de produção de todas as mercadorias.
Mas não vamos por aí. Fiquemo-nos por uma questão mais comezinha, suscitada por umas leituras recentes.
Volto a ler alguns pregadores que me explicam que temos de nos preparar para uma sociedade onde o trabalho, mais do que mal pago, será um bem escasso. Defendem que os que terão direito ao trabalho devem pagar aos que não o têm. Prometem uma sociedade tripartida entre capitalistas, trabalhadores e excluídos do trabalho. É esta tese estranha, mas que vai fazendo caminho, que me faz pegar neste tema, ainda que de forma ligeira.
Num artigo recente lia-se que «com base em dados dos Estados Unidos, Europa, Canadá e Japão, o emprego está a diminuir». E mais adiante podia ler-se que «temos que nos preparar para uma sociedade onde o trabalho vai ser um bem cada vez mais escasso».
Mesmo em tempos que já lá vão, não foi uso por em causa nem a necessidade do trabalho nem a sua importância quer no campo da paz quer no da guerra. Sendo o trabalho tido como uma obrigação do povo, e sendo este considerado escravo ou servo, os senhores entendiam que o trabalho era uma obrigação popular sem direitos, apropriando-se eles da totalidade do valor do trabalho.
Ainda antes dos cristãos considerarem o trabalho como uma condenação divina, e antes de Aristóteles, já Hesíodo defendia que a vida se deveria fundar na justiça e no trabalho. O trabalho, dizia ele, agradava aos deuses e, por isso, criava recursos e consideração social. Pelo trabalho o ser humano fazia-se independente e afamado. «A alma, ao desejar riquezas, impulsiona-nos para o trabalho», disse. O trabalho estava já então no centro de toda a existência humana, de toda a vida social e comunitária. O trabalho comandava a vida dos humanos. Desafiava-os a compreender-lhe o valor e a fazer uma justa repartição deste.
Nos dois ou três últimos séculos, em tempo de cristianismo e capitalismo, procurou-se melhorar as condições e a qualidade do trabalho, e encontrar formas mais justas de distribuir o valor económico por ele produzido. Questões complexas a opor patrões a trabalhadores, as organizações patronais às sindicais. Mas disputar o valor do trabalho, é uma coisa, defender a condenação de parte da humanidade à ausência dele, é outra bem diferente.
Não me desagradaria o fim do trabalho assalariado. Empenho-me nessa mudança da natureza do trabalho. Desejo o trabalho livre por oposição ao trabalho escravo ou servil a que estamos sujeitos na sociedade capitalista. Agrada-me a possível alteração das relações de trabalho. Do direito de cada um a apropriar-se e a fazer uso livre do valor real do seu trabalho. Julgo que a solidariedade deveria resultar mais da partilha voluntária do que da partilha coerciva do valor do trabalho de cada um. Seduz-me a ideia de cada um poder trabalhar sem que tal signifique a necessidade de vender a retalho o seu tempo, que é como quem diz, a sua vida. Mas não consigo vislumbrar uma sociedade de onde o trabalho tenha desaparecido.
Não é verdade que o trabalho e o emprego estejam a diminuir. A nível global existe um enorme aumento do volume de trabalho, mas horários de trabalho mais curtos estão a ser substituídos por horários mais longos. Os donos do capital, procurando trabalho cada vez mais barato, fazem os postos de trabalho circularem pelo mundo.
«A população aumenta e não há um correspondente aumento de postos de trabalho», insistem. Não é verdade. Mesmo na Europa, o número de postos de trabalho não tem diminuído, e se diminuísse isso devia-se a quê? Há falta de necessidade de trabalho ou há falta de investimento e de iniciativas que promovendo a produção de riqueza promovam a existência de mais trabalho? Como se responde à fome e à pobreza no mundo? Será diminuindo postos de trabalho?
Estamos longe de esgotar as necessidades de trabalho nas funções tradicionais. Estamos longe de garantir aos dois géneros, homens e mulheres, uma efectiva igualdade de direitos no acesso e na remuneração do trabalho. Mas, para além do trabalho tradicional, abrem-se hoje perspectivas para milhões de postos de trabalho em áreas que antes não eram tidas em conta: ambiente, ecologia, novas tecnologias, entre outras. Como exemplo comezinho, lembramos que vão ser precisos milhões de postos de trabalho para recolher o plástico e o lixo que actualmente anda nos regatos, nos rios, no mar, nas lixeiras... e, ou fazemos este trabalho, ou desaparecemos.
O trabalho não é uma necessidade dispensável. O que é verdade é que o sistema capitalista, com a deificação do mercado, já não tem condições para gerir a economia do mundo e as necessidades elementares da nova humanidade. Os detentores do capital não estão em condições de entender, e menos ainda de dar resposta, às novas necessidades do nosso tempo. A formação e distribuição da riqueza, o trabalho directo e indirecto, vão estar em discussão acesa nos próximos tempos. O papel do Estado vai voltar a colocar-se. Não no sentido do velho antagonismo «capitalismo privado / capitalismo monopolista do Estado». O Estado, a natureza do Estado, o papel do Estado, coloca-se agora no sentido de discutir a sua reconfiguração (ou reinvenção) de modo a garantir que todos os cidadãos, nas suas múltiplas aspirações e modos de ver, encontrem um trabalho socialmente útil a desempenhar e, nas comunidades, se desenhem novas participações e solidariedades... com trabalho, é claro.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 179
Ano 17, Junho 2008

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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