Para o Adriano que me tem acompanhado em muitas das viagens propostas por Buñuel
Financiado por privados, com uma duração e construção pouco convencionais, e deliberadamente chocante, Un Chien Andalou e o seu "irmão" L'Âge D'Or são provavelmente as expressões mais notórias do vanguardismo no cinema do século passado. A sua reputação escandalosa foi responsável pela sua invisibilidade: as audiências do primeiro foram praticamente restritas ao gueto dos cineclubes, enquanto o segundo foi mesmo proibido durante mais de cinquenta anos. Para os seus "fabricantes" espanhóis - eram assim que queriam ser conhecidos - Un Chien Andalou foi o seu bilhete de entrada no Movimento Surrealista, liderado na altura por André Breton e Louis Aragon. Luís Buñuel e Salvador Dali separaram-se durante a rodagem de L'Âge D'Or. Os surrealistas deram desde o início do seu movimento uma enorme atenção ao cinema como críticos, argumentistas ou como espectadores, sendo por isso surpreendente que tivessem produzido tão poucos filmes até à altura. Os filmes realizados por Man Ray e Antonin Artaud não os convenceram verdadeiramente. Parte dos problemas residia no facto de o surrealismo significar automatismo, ou seja, a fidelidade absoluta à voz do inconsciente, sem interferência do racional. E o cinema não funciona, ou funciona mal, sem premeditação, ensaio e algum conhecimento técnico. Buñuel e Dali sossegaram as ansiedades surrealistas insistindo no processo automático no trabalho e na inspiração do seu primeiro filme. A origem, explicaram depois, foi a montagem de dois sonhos que tiveram na noite anterior à rodagem: o sonho de Buñuel foi o de uma nuvem rasgando a lua ao meio como uma lâmina um olho, o de Dali era o de uma mão "comida" por formigas. Ficou decidido assim e fizeram o filme segundo o mesmo princípio: troca de imagens e ideias, abrindo "todas as portas para o irracional e (ficando) apenas aquelas imagens que nos surpreenderam, sem explicar porquê.". Tal receita podia produzir uma sucessão de "gags", como o filme dadaísta de Picabia Entr'acte (1924) ou as "desanimadoras" curtas-metragens de Man Ray. O que fez a verdadeira transgressão de Un chien Andalou - e mereceu a benção dos surrealistas - foi os "gags" estarem inseridos numa aparente vulgar história de amor, o que subvertia completamente as convenções do cinema "mainstream". Este densamente povoado filme de 70 minutos, desenha não só uma troca de sonhos mas também experiências de poesia, pensamento crítico e de alguma maneira piadas e jogos que Dali e Buñuel ? juntamente com Federico Garcia Lorca?durante quase uma década partilharam na Universidade de Madrid. Nele também aparece o último quadro de Dali, assim como imagens de futuros quadros seus. Anos mais tarde Buñuel escreveu sobre Un Chien Andalou: " Historicamente, este filme representa uma violenta reacção contra o que na altura se chamava "avant-garde cine", que era dirigido exclusivamente à sensibilidade artística e à razão do espectador, com os seus jogos de luz e sombra, os seus efeitos fotográficos, a sua preocupação com a montagem rítmica e a pesquisa técnica, e por vezes num caminho perfeitamente convencional. A este grupo de avant-garde cine pertenciam Ruttmann, Cavalcanti, Man Ray, Dziga Vertov, René Clair, Dulac, Ivens, etc. Em Un Chien Andalou o realizador toma pela primeira vez um lugar puramente poético-moral. Tomem moral no sentido do que rege os sonhos e as compulsões parassimpáticas. No trabalho da história toda a ideia de uma racional, estética ou outra preocupação com assuntos técnicos foi rejeitada como irrelevante. O resultado é um filme deliberadamente anti-plástico, anti-artístico, considerado nos cânones tradicionais. A história é o resultado de um automatismo físico consciente, e, por extensão, não pretende contar um sonho, embora aproveite o mecanismo idêntico ao dos sonhos. As fontes onde o filme vai buscar inspiração são as da poesia, livres do peso da razão e da tradição. O seu objectivo é provocar no espectador reacções instintivas de atracção e de repulsa". A experiência tem demonstrado que o seu objectivo foi alcançado.
Paulo Teixeira de Sousa
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