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O passeio

Os passeios escolares, sempre criaram muita expectativa, entusiasmos, e um certo lugar do excessivo.
A angústia e a responsabilidade dos professores; o desejo de todos de que seja um dia bem passado; as novas relações de comunicabilidade, e muitas vezes de confidências que um ano ou dois de aulas não proporcionaram; a ideia do passeio como de um dia fora do comum para todos os alunos e mesmo de alguma preocupação para os pais e professores faz daquele dia um dia especial.
Para os alunos, nessa altura, pode haver roupas a estrear; há um farnel mais exagerado, um pouco mais de dinheiro de bolso, muitas vezes de poupanças ou contribuições mais generosas da família. Uns chegam com o MP3 do irmão mais velho, outros com um novo jogo, muitas meninas com fotografias dos irmãos ou da família, todos levam alguma coisa para mostrar.
É comum, entre professores, pais, outros membros da comunidade e mesmo entre os alunos, ouvir referências ao passeio escolar, mas sempre uma referência a um momento que pode ser tudo menos um espaço de aprendizagem escolar. Ora nem sempre será assim e uma saída escolar pode ser um espaço de aprendizagem e de aquisição de saberes científicos e artísticos, sobretudo para as crianças que, de outra forma, menos oportunidades terão de o fazer.
Naquele dia fomos à Corunha numa visita de estudo pensada e organizada para que funcionasse como espaço de aprendizagem. Visitámos o Museu do Homem, o Museu da Ciência e o Aquário. Manhã e tarde estiveram intensivamente ocupados ouvindo explicações, observando, fazendo pequenos registos escritos. Foi um dia de descoberta e trabalho intensivo. Não houve tempo para incursões à cidade, nem para compras. Até tinham esquecido que era um passeio.
Mas tratava-se de alunos de 2º ciclo de uma escola com algumas dificuldades económicas e sociais e por isso aquela saída era, para alguns, a primeira saída para fora do país e para outros, mesmo a primeira saída fora da cidade onde viviam. Vamos ao estrangeiro, diziam. Até tiveram que cambiar dinheiro? De facto o euro estava aí a chegar mas era ainda a peseta e o escudo que estavam em vigor.
Foi quando fazíamos a auto-estrada de regresso a Portugal que se lembraram. Foi então aí o momento da descompressão. Quando se aperceberam de que a fronteira estava próxima levantou-se um coro de pedidos insistentes para parar numa estação de serviço ou noutro lugar. Estamos a chegar e eu ainda não comprei uma prenda para a minha mãe! Diziam alguns. Ainda tentámos convencê-los a aguentar um pouco mais e depois pararíamos em Valença. Isso nem pensar! Tinham que fazer compras em Espanha!...
Perante tal insistência parámos numa estação de Serviço com um pequeno centro comercial. Imediatamente o autocarro se esvaziou e foram a correr para as bancas e escaparates. Havia alguma oferta e eles partiram avidamente à procura.
Compraram os incontornáveis gelados e coca colas, porta-chaves, canetas ou as coisas mais absurdas. Depois procuravam nos bolsos até ao último cêntimo, faziam contas e iam procurar mais alguma coisa?Alguns, mais pequenos, procuravam-nos: stora ajude-me aqui, que é que eu posso comprar com este dinheiro?
Não adiantou explicar-lhes que não tinham que gastar todo o dinheiro que levavam. 
Não, stora, este dinheiro é do passeio, e nós viemos a Espanha, não foi? Então temos que o gastar aqui em Espanha,... O significado da compra ultrapassava em muito o valor do objecto adquirido. Ali, o que importava era integrar aquela festa consumista no lugar exacto onde pertencia: as compras do passeio tinham que ser feitas ainda no estrangeiro e não se podia regressar a casa sem ter gasto as últimas pesetas.
Devido à ocupação entusiasmada de toda uma jornada de descoberta, estudo e trabalho, a componente tradicional dum passeio - as compras das lembranças e das recordações - quase tinha sido esquecida.

Angelina Carvalho


  
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Edição:

N.º 177
Ano 17, Abril 2008

Autoria:

Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto

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